Marco Antonio Coutinho Jorge
Publicado no Jornal do Brasil, “Caderno Idéias/Ensaios” em 24/09/1989, em homenagem ao cinqüentenário da morte de Freud.
Já foi dito e repetido que este século foi o de Sigmund Freud, mas hoje cabe perguntar: pertencerá o pensamento de Freud a este século? Agora, passados cinqüenta anos de seu perecimento, quando o discurso freudiano dá sinais de uma vitalidade otimizada, a que atribuir tamanha pujança e atualidade retardatárias? À crescente fetichização da vida do mestre vienense encontradiça nas novas tendências do biografismo que tangenciam a hagiografia? À maciça difusão da psicanálise, tornada onipresente tanto nos meios de comunicação como nos mais variados setores da produção cultural hodierna? Aquela outra fetichização desta vez referente ao texto freudiano, cuja talmudização emana da pena de muitos analistas?
Certamente que a nenhum desses fatores, os quais primam por conservar inédito aquilo que há de irredutível na experiência freudiana. Freud já sublinhava que a aparente adesão a suas teses não poderia ser garantia de qualquer legitimidade, já que tal aceitação freqüentemente revelava apenas o exercício da função obnubilante da resistência. Quanto à fetichização da vida ou da obra, esta incorre em erro grosseiro: seja esquecendo que o mais minucioso detalhamento biográfico perde necessariamente a essência da postura subjetiva, seja não observando que a recorrência textual reiterada, na verdade, funciona como defesa contra a experiência reflexiva que o próprio texto visava suscitar, faltando propriamente a ambas a demonstração de uma experiência discursiva radical. Ambas têm em comum um projeto de cunho museológico e é nessa medida que quando se visita o Freud Museum, em Maresfield Gardens, em Londres, onde Freud passou exilado o final da vida, não podemos nos furtar de supor o que o próprio Freud pensaria daquilo tudo. Uma carta de 23/04/33 a Roy Winn nos permite tecer conjecturas pouco ambíguas: “Seus votos de me escrever uma autobiografia mais íntima não têm probabilidade de realizar-se. Já achei muito mobilizante evocar determinado número de circunstâncias pessoais (exibicionismo) para escrever A interpretação dos sonhos, e não creio que alguém extraísse grande coisa de tal publicação. Pessoalmente, só peço ao mundo que me deixe em paz e, em vez disso, dedique seu interesse à psicanálise”.
Freud esteve à frente de seus contemporâneos, o que teve como efeito fazer com que a essencialidade de seu projeto permanecesse à deriva ao longo do século e só emergisse com mais virulência – embora ainda não toda da qual se mostra capaz – nas últimas décadas. Sua obra conseguiu sobreviver ao demorado processo de mortificação a que foi submetida, graças à medicalização e à psicologização norte-americana como também em toda parte onde a prática psicanalítica teve sua existência monopolizada pela International Psychoanalytical Association (IPA). Os fundamentos de sua experiência restaram fossilizados, incubados talvez pudéssemos dizer.
Tais fundamentos residem primordialmente numa concepção inteiramente inovadora da sexualidade humana, assim como numa descoberta da principalidade do determinismo inconsciente, que causaram escândalo sobretudo pela razão com que foram abordados. Uma nova razão, até hoje pouco compreendida, posto que extravasa os pressupostos da lógica clássica e introduz uma ternariedade estrutural definitória do inconsciente.
A teoria freudiana da sexualidade, por exemplo, incompatível com o moralismo normativizante a que foi reduzida até a intervenção do psicanalista francês Jacques Lacan no campo teórico, é um elemento nuclear para a compreensão da especificidade da existência humana. Nela, a noção de pulsão ocupa lugar proeminente, pois, distinta do instinto que é desencadeado ciclicamente nos animais, a energia pulsional surge como uma força constante, endógena, logo, alheia aos estímulos externos e impossível de ser eliminada. Dito de outro modo, a sexualidade humana acha-se espraiada por todas as manifestações discursivas, não importa quais sejam elas. Assim, para Freud, o sexo não se reduz ao ato sexual, mas, antes disso, é um dado contínuo, inarredável e constitutivo da experiência humana em geral. Nada mais contrário ao pensamento freudiano que essa suposição psicologizante de uma espécie de moral na natureza com a qual os psicanalistas pós-freudianos quiseram nutrir seus ideais de harmonia e felicidade.
A tese freudiana do determinismo inconsciente deu origem ao livro A psicopatologia da vida cotidiana (1901), cujo título mesmo provoca espanto: pois como pensar numa patologia cotidiana, senão subvertendo a um só tempo a própria noção do que seja patológico? Aí vai uma dimensão radical introduzida por Freud que, girando em torno da questão do sentido dos sintomas de suas pacientes histéricas, acaba por ampliar o espectro de ação de sua abordagem para estendê-lo àqueles fenômenos que se acham presentes em todo e qualquer sujeito – sonhos, chistes, atos falhos, esquecimentos etc. Quanto a esses, trata-se igualmente para Freud de poder restituir o sentido a eles inerente, embora ocultado pela ação deformadora da censura. Sua descoberta revela, por detrás de tais ocorrências, a ação contínua de um desejo que é carreado por uma fantasia sexual de cunho primordialmente infantil, cuja significação a análise permite fazer emergir.
A radicalidade da descoberta freudiana do inconsciente, que determina todos nossos atos, tendências e vontades de modo absoluto, pode ser resumida do seguinte modo: o homem sonha incessantemente, esteja dormindo ou acordado, pois também nesse caso sua relação com o mundo é mediatizada pela fantasia. Dito de outro modo, sonho e realidade têm, para a psicanálise, idêntica estrutura. Tocamos aí no objetivo maior da cura analítica: o despertar. Ainda que o limiar pétreo constituído pela fantasia e pela linguagem não possa ser franqueado, ele pode vir a ser objeto de uma dialetização tal que dele retire o poder alienante, mesmo que não chegue a desconstituir seu caráter fundante para o sujeito.
Assim, permitindo ao sujeito resgatar aqueles elementos que presidiram sua própria gênese, a análise permite deslocá-los enquanto instância suprema. Ela pretende, em seu término, destituir o sujeito desses ancoramentos simbólicos e imaginários mais originais, retirar o extremo sentido de que estão, e não sem razão, imbuídos, e assim dar ao sujeito algum acesso ao real: para além do Nome, atingir aquilo que, mais importante, subjaz na base mesma do processo de nomeação. Despertando o sujeito do profundo sonho no qual se achava mergulhado e que dava algum sentido a sua vida, a experiência analítica lhe permite reinventar o sentido, pluralizá-lo e adquirir uma liberdade que é congruente com uma entrega radical a tudo aquilo que porventura possa vir do real.
Surge assim o criador, insatisfeito com o já criado e partícipe do ato mesmo da criação, o qual com sua obra constitui de imediato uma dívida, pois ao arrancar o novo do real compromete nesse ato a todos os homens, posto que o real a todos concerne. Desse modo, como no dizer de Nietszche, despertar é tornar-se criança, e também aqui o que Freud chamou de “sabedoria maior da língua” obtém excelente exemplificação: pensamos na identidade etimológica em nossa língua dos termos criar, do latim creare, e criança, creantia.
Atinge-se aqui algo que é preciso desvelar como sendo intrínseco ao projeto freudiano: a excelência do humano. Isto no intuito de maximizar a potência de determinados setores do pensamento freudiano que dizem respeito à aplicação da psicanálise às questões do mundo.
Exemplar disso é o ensaio sobre O futuro de uma ilusão (1927), no qual Freud propõe explicitamente que a psicanálise deve vir a poder deslocar a religião do lugar que ela tem ocupado para a humanidade. Contudo, tal proposta freudiana tem sido relegada ao esquecimento. Nesse ensaio, Freud aborda o problema da origem da religião considerando as idéias religiosas como ilusões provenientes, sobretudo, da necessidade de defesa dos homens contra as forças superiores da natureza. Freud situa a raiz da religião no estado de desamparo vivido pela criança na primeira infância, estado esse que sendo revivido pelo adulto nas mais diversas circunstâncias ao longo da vida e não mais podendo contar com a proteção outrora oferecida pelos pais, requer a crença na figura de um Pai protetor todo-poderoso. Assim, a religião constitui uma espécie de neurose da infância da humanidade, a “neurose obsessiva universal da humanidade”, e, tal como a neurose obsessiva das crianças, surgiu do complexo de Édipo e do relacionamento com o pai. Considerando os ensinamentos religiosos como verdadeiras relíquias neuróticas, Freud postula que é chegado o momento de crescimento do homem, que permitirá infalivelmente o afastamento da religião.
Nunca seria demasiado sublinhar o papel fundamental desempenhado por Jacques Lacan nessa tarefa de restaurar a verdade do pensamento freudiano, numa época em que os institutos e formação psicanalítica da IPA tinham na obra de Freud uma referência absolutamente secundária, para não dizer nula. Mas muito ainda resta a ser feito e o ato lacaniano de tomar para si as questões mais candentes da subjetividade deve ser retomado hoje numa perspectiva que redescubra as vertentes do pensamento de Freud voltadas para a coletividade humana, que aguardam que lhes seja dada uma maior conseqüência. É nesse sentido que, entre nós, M.D. Magno tem falado, hoje, da necessidade de se promover um retorno de Freud, via Lacan, ao mesmo tempo que cuidado de desinibir progressivamente o trato da psicanálise com outros discursos emergentes na contemporaneidade. Foi também nessa mesma direção que Lacan fez a seus discípulos, em seu derradeiro seminário proferido em Caracas, uma indicação cujo aparente paradoxo deveria suscitar reflexão. Disse ele então: “Cabe a vocês serem lacanianos. Quanto a mim, sou freudiano”.
Freud faleceu há cinqüenta anos, mas seu pensamento sobreviveu a duras penas às resistências do século, obtendo hoje, na aurora do século vindouro, uma revificação tal que nos permite apostar no fato de que o futuro é freudiano.
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