quarta-feira, 13 de abril de 2011

VIOLÊNCIA E DISCURSO




"Não há direito que não se escreva sobre corpos. Ele domina o corpo. A própria idéia de um indivíduo isolável do grupo se instaurou com a necessidade, sentida pela justiça penal, de corpos que devem ser marcados por um castigo e, pelo direito matrimonial, de corpos que se devem marcar com um preço nas transações entre coletividades"
– Michel De Certeau, 2001.


"Diz-se que a letra mata quando o espírito vivifica [...] mas nós também perguntamos como o espírito viveria sem a letra. As pretensões do espírito, no entanto, permaneceriam irredutíveis, se a letra não tivesse provado que ela produz todos os seus efeitos de verdade no homem sem que o espírito tenha que se intrometer minimamente nisso. Essa revelação se fez ela mesma a Freud, e ele chamou sua descoberta de inconsciente".- Jacques Lacan, Escritos

A violência é o que as sociedades carregam de pior. Nada é mais uniformemente detestável pela modernidade e pós-modernidade do que a prática da violência. Paradoxalmente, a violência é praticada, de formas variadas, em qualquer sociedade. A história da humanidade é escrita em nossos livros com uma ênfase nos grandes atos violentos praticados através dos tempos. A história particular de cada um também pode ser marcada pelos atos violentos sofridos.

A violência, muitas vezes, parece estar situada no limite do suportável. Um limite que marca uma diferença de lugares. Uma prática violenta necessariamente manifesta uma diferença. Nesta manifestação da diferença de posições podemos fazer a hipótese de que se trata de um jogo de reconhecimento. Podemos pensar esta suposição nas guerras, atos terroristas, assassinatos, roubos, brigas com vizinhos, cônjuge, sócio, etc. Após o ato violento temos uma definição de lugares. O que não se refere somente à posição de agressor e de vítima ou vencedor e perdedor. Esta definição diz respeito ao fato de que, depois de cometida a violência, as coisas mudam, um limite aparece, mesmo que provisório. Além disso, o ato violento carrega algo de explicitamente irreversível. Talvez por isso se preste tão bem para marcar as datas de nossa história. O que aparece como irreversível se conjuga com irrepresentável. Em todo ato violento resta um resto injustificável discursivamente. O ato pode ser nomeado, explicado e exemplificado, porém para ser considerado violento ele deve conter algo que escapa a representação. Nós vivemos tentando representar a violência, mas bem sabemos que a representação da violência não é a violência, basta ver o sucesso deste tipo de filmes, livros, o próprio cotidiano de nossa televisão. O ato violento contém algo que escapa a representação, mas que produz representações diversas.

[…]  O que a violência tem de real, de irrepresentável, de impossível? Nada é fácil neste campo. Como escrever sobre o irrepresentável? Começaremos com a morte, vivemos tentando representá-la, para tanto não faltam religiões, a ciência ou a arte. Por vezes chegamos a pensar que justamente o irrepresentável da morte é o motor que mantém a produção destas três.

Normalmente não queremos saber sobre a morte, mas é fato que todo ser vivo morre. A morte é o resultado da vida. A maneira como cada um vive aponta a forma como cada um vai morrer, ela vai se apresentando no decorrer da vida e nós podemos encontrá-la no trabalho, crime, esporte radical, nas estradas, num gesto mais lento, num gesto mais rápido, na comida, no sexo, na apatia, debilitação orgânica, etc. Porém, a experiência da morte é algo que nos escapa. Podemos experimentar a morte do outros, de pessoas que gostamos ou que nem conhecemos, porém a nossa própria morte, que nos aguarda em algum lugar, desta, nós não temos a experiência. O que quer dizer que quando ela vier vai ser algo de novo, digamos uma surpresa.

A questão vai e vem, mas sempre acaba na morte. Não conseguimos escapar dela. Freud no texto "Das Unheimliche" [em Português com o título: ‘O estranho’] aponta que "nenhum ser humano realmente a compreende, e o nosso inconsciente tem tão pouco uso hoje, como sempre teve, para idéia da sua própria mortalidade". Na nossa sociedade o alívio da dor relativa à morte de alguém que gostamos, normalmente é buscado na religião. […] parece que todas as religiões se baseiam em uma vida após a morte. Lacan vai dizer no seminário VI, […], que a morte de alguém que gostamos causa um furo no real que nenhum significante consegue preencher. É necessário todo o conjunto de significantes para o trabalho do luto. Sempre que a morte se apresenta, não enquanto representação, mas no que ela tem de irrepresentável, ela exige um grande esforço psíquico. A morte do outro de alguma forma faz elo com a morte própria de cada um. Segundo Freud, "uma vez que quase todos nós ainda pensamos como selvagens acerca desse tópico (morte), não é motivo para surpresa o fato de que o primitivo medo da morte é ainda tão intenso dentro de nós e está sempre pronto a vir à superfície por qualquer provocação".

Neste texto, "Das Heimliche", Freud faz uma pesquisa procurando delimitar os vários significados que a palavra heimlich tem no alemão, entre os quais está familiar, íntimo, lugar livre da influência de fantasmas, algo oculto e perigoso, afastado do conhecimento, assustador. Ele vai escrever que “heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que coincide com seu oposto unheimlich”. Freud então vai nos apresentar o significado de estranhamento familiar como sendo o unheimlich.

Um certo estranhamento ocorre quando nos deparamos com a morte ou com alguma violência que carrega o irrepresentável, quando somos protagonistas de uma cena violenta e recebemos o impacto de algo que nos causa uma certa estranheza, o que por vezes pode dar uma sensação de irrealidade, como se aquilo não estivesse acontecendo conosco. Quem já foi assaltado e teve a vida ameaçada, quem sofreu um acidente de carro no qual pessoas se feriram tem uma idéia desse estranhamento. Mas por que familiar? Não se trata de um familiar que se dá pela repetição da cena, mas porque o que está em jogo é algo de muito intimo para cada um. A intimidade, vocês sabem, é algo de corporal. Como coloca Freud, "pode ser verdade que o estranho seja algo que é secretamente familiar, que foi submetido a repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa condição". Ainda neste texto Freud faz notar que "um estranho efeito se apresenta quando se extingue a distinção entre imaginação e realidade, como quando algo que até então considerávamos imaginário surge diante de nós na realidade (...)".

Seguindo esse caminho Lacan manifesta sua opinião dizendo que:
"O Unheimlich não está ligado, como alguns acreditavam, a todos os tipos de irrupção do inconsciente. Está ligado a esta espécie de desequilíbrio que se produz no fantasma, e portanto, o fantasma, atravessando os limites que lhe são primeiramente consignados, se decompõe e vem a reencontrar isto pelo que ele se junta a imagem do outro."

O fantasma se conjuga pela relação do sujeito diante do objeto causa do desejo. Pela teoria lacaniana o objeto causa do desejo, objeto a, é o que vem a ocupar o lugar de uma perda que é constitutiva do sujeito na sua relação com a linguagem. Para falar o sujeito sacrifica algo. O que ele perde é a possibilidade de uma relação direta com o real, o que ocorrerá necessariamente via representação, ou para sermos mais específicos, via discurso. A relação do sujeito com o mundo, a partir dessa perda, vai se dar sempre via discurso. O que vem a ocupar o lugar do que foi sacrificado é o objeto causa do desejo, que em uma dada conjuntura imaginária, diante do sujeito, possibilita a produção do fantasma que suporta o próprio desejo. O que se apresenta nesta lógica é que não existe realidade pré-discursiva. Toda realidade se funda em um discurso. Portanto existem tantas realidades quantos discursos existirem, mas somente um real.


Uma das formas de abordarmos o tema da violência é este ponto de tensão entre o real e as possíveis realidades. Aceitando a hipótese de que a violência tem algo de irrepresentável, irreversível e, portanto, do real, deveremos por consequência aceitar que alguma coisa nos escapa quando tentamos discursar sobre este tema assim com estamos fazendo agora. Então, se não existe realidade pré-discursiva e se a violência carrega em si o irrepresentável podemos supor que o que conhecemos como violências são manifestações derivadas de determinados discursos que tendem a um lugar no qual o discurso não se sustenta enquanto produtor de realidades. Isso quer dizer que a violência toma corpo quando o discurso falta.

Vocês poderiam contrapor dizendo que existem discursos violentos. Não discordamos neste ponto. Porém os discursos violentos não são da mesma ordem que a violência, esta aponta um limite do discurso, mesmo sendo produto de um discurso. Podemos, por exemplo, analisar os insultos ou os apagamentos subjetivos produzidos via discurso. Mas a violência somente vai se dar quando o discurso tocar no limite do irrepresentável.


Vocês ainda poderiam dizer: sobre o que não temos acesso não podemos falar e que é através do discurso que conhecemos a violência e desta forma a violência é um discurso. Porém, todos nós entendemos que uma coisa é o ato violento […] e outra coisa é o que falamos e escrevemos sobre este ato. Também sabemos que a história se faz a partir do que escrevemos e não sobre o ato em si. Então uma história, particular como acontece na clínica, da civilização como acontece nos livros é sempre sobre o que se escreveu, falou, sobre o que se perdeu. Isso não invalida a história, pois através da escrita disso que se perdeu mantêm-se a possibilidade de levarmos o acontecimento para mais adiante. A questão que pretendemos colocar para vocês com relação a pensarmos a violência pode se centrar no que entendemos por discurso. Um ato pode ser considerado um discurso? Bin Laden, líder de um famoso grupo terrorista, ao se referir ao atentado de 11 de setembro de 2001 disse em um vídeo exibido mundialmente, após o atentado, que aquele era um discurso que todos entenderiam, independentemente da origem ou língua que cada um possa estar ligado. Um ataque terrorista ao centro econômico do mundo, símbolo de poder, as famosas torres gêmeas de Nova York. Mas por que Bin Laden ainda precisou aparecer em um vídeo discursando sobre o atentado?

Talvez, aqui, se faça necessária uma distinção entre escrita violenta e escrita da violência. Por exemplo, uma carta que leva escrito um dizer "mate o portador" como a que foi destinada a Hamlet e que ele astuciosamente reenvia a dupla de amigos/inimigos Rosencratz e Guideltern pode ser considerada uma espécie de violência, mas a escrita, o conto de Shakespeare não é uma violência. Por essa via nós podemos pensar algumas questões sobre os programas de televisão violentos. A escrita da violência não é o mesmo que a violência. Os filmes de televisão que mostram a violência não são a violência, neste lugar a violência já está simbolizada, ela não nos causa tanto estranhamento.

A violência nos mostra a nossa fragilidade diante do outro. O simbólico, devido a sua característica inevitavelmente social concerne força, pela união, aos humanos. Ao mesmo tempo o simbólico nos possibilita a lei.

A lei não se faz pelo que ela significa. Por exemplo, a lei "Não matarás" pode ter vários sentidos: Não matarás quem? Quando? De que forma? Atualmente o direito e a justiça se ocupam do significado das leis, da sua operacionalidade. Esta não é a ocupação da psicanálise. Para ela o significado da lei não é a questão, mas a forma como a lei articula as possibilidades de gozo. A psicanálise não se ocupa do significado da lei. Como por exemplo: não ultrapasse o limite de velocidade. A ocupação da psicanálise está mais voltada para o significante lei, ou seja, o que a lei articula na sociedade e que afeta o sujeito. Digamos que a psicanálise está interessada neste NÃO implícito em toda lei. O que conta é o caráter de interdição da lei. O que interessa não é o enunciado, mas sua capacidade de interdição. Essa capacidade de interdição é discursiva, de modo que a lei vai ser um resultado deste discurso. Se o discurso que funda a realidade social não sustenta determinada lei ela não vai ser efetiva.
Como estamos circundando o NÃO e a LEI, seguindo a psicanálise teremos que abordar a noção de PAI. A paternidade é um efeito de reconhecimento. Somente é possível ocupar o lugar de pai se alguém o colocar neste lugar. Freud chegou a explicitar que pai é quem é reconhecido como merecedor do amor. Existe um ditado popular que diz que a maternidade é certa e a paternidade incerta. Quando Freud aborda a história de Édipo Rei, escrita por Sófocles, ele aponta que o pai ocupa o lugar de terceiro na relação da mãe com filho, um terceiro que simboliza a entrada da criança no mundo social, na linguagem, no desejo. Isso porque esse pai, enquanto uma metáfora, vem a representar a impossibilidade de completude para a criança. Ela não é tudo nem tem tudo, por isso ela tem que falar, pedir reconhecimento ao outro. O que possibilita a criança desejar é a metáfora paterna, e uma metáfora é a substituição de uma palavra por outra. O pai, enquanto terceiro, possibilita esse deslizamento que gera condições de substituirmos pai, mãe, seio, etc, por outros elementos da vida.

Não é necessário muito esforço para ligarmos uma série de atos considerados violentos - tais como: atentados terroristas, assassinato de familiares, brigas de vizinhos e até mesmo as guerras protagonizadas por grandes potências mundiais, o crime organizado em países nos quais a diferença de classes sociais é muito acentuada - a um forte pedido de reconhecimento.

Como bem sabemos uma lei se constitui na possibilidade de repetição, portanto é necessária uma língua para se ter uma lei. A língua é parte do discurso. A lei é anterior a escrita, mas pela escrita a lei encontrou uma maneira forte de se estabelecer. Supostamente sem equívocos. Quando se diz está escrito, isso nos parece do nível de uma certeza. O que é interessante de termos na idéia é que a lei escrita tal como a conhecemos vem depois, por isso que não resolve mudarmos a forma de escrita, novas leis, mais leis, menos leis na busca de uma lei que fosse perfeita, sem equívocos. No que diz respeito a língua é impossível não existir equívocos, justamente por existir um real da língua […].

De nada adianta construirmos novas leis se não há sustentabilidade discursiva para elas. Não adianta dizermos "Tu não podes matar", se existe um discurso que sustenta essa morte. Que seja o reconhecimento por isso, ou seja, um lugar desejado no social, em uma dada realidade, que se suporta em um discurso. Imaginemos um criminoso, um assassino, a partir do momento em que ele transgride, ele passa a ter uma escritura no corpo, ou seja, ele passa a ser reconhecido, perseguido, capturado, preso. Paradoxalmente quando ele é retirado fisicamente da sociedade ele passa a fazer parte da simbólica desta sociedade, ele vai para o jornal, para a televisão. O preço de uma pertença pode ser até a morte, e nós sabemos que isso não é incomum, está nas nossas histórias de mártires, na religião. Conforme Michel De Certeau (2001, p. 232): 

"O sofrimento de ser escrito pela lei do grupo vem estranhamente acompanhado por um prazer, o de ser reconhecido (mas não se sabe por quem), de se tornar uma palavra identificável e legível numa língua social, de ser mudado em fragmento de um texto anônimo, de ser inscrito numa simbólica sem dono e sem autor". 
          - CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

O que nós temos até aqui é que é através da lei, um limite, que se chega ao reconhecimento, pois somente podemos ser Um quando nos diferenciamos do Outro. Também temos que a lei se escreve sobre o corpo. Mas como nós havíamos visto naquele primeiro momento sobre o estranhamento familiar causado a partir de uma violência podemos supor que este sentimento vem do encontro com o real. Será que podemos supor que o serve de interligação, de solda, entre a violência e a lei é propriamente o corpo, o gozo e a morte, os três do real como coloca Lacan no Seminário XXI ?




Por Fernando Hartmann - 25/09/2006
Imagens: GOOGLE



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