sábado, 23 de abril de 2011

O HOMEM SONHA SEM PARAR


Marco Antonio Coutinho Jorge

Publicado no Jornal do Brasil, “Caderno Idéias/Ensaios” em 24/09/1989, em homenagem ao cinqüentenário da morte de Freud.


   Já foi dito e repetido que este século foi o de Sigmund Freud, mas hoje cabe perguntar: pertencerá o pensamento de Freud a este século? Agora, passados cinqüenta anos de seu perecimento, quando o discurso freudiano dá sinais de uma vitalidade otimizada, a que atribuir tamanha pujança e atualidade retardatárias? À crescente fetichização da vida do mestre vienense encontradiça nas novas tendências do biografismo que tangenciam a hagiografia? À maciça difusão da psicanálise, tornada onipresente tanto nos meios de comunicação como nos mais variados setores da produção cultural hodierna? Aquela outra fetichização desta vez referente ao texto freudiano, cuja talmudização emana da pena de muitos analistas?
Certamente que a nenhum desses fatores, os quais primam por conservar inédito aquilo que há de irredutível na experiência freudiana. Freud já sublinhava que a aparente adesão a suas teses não poderia ser garantia de qualquer legitimidade, já que tal aceitação freqüentemente revelava apenas o exercício da função obnubilante da resistência. Quanto à fetichização da vida ou da obra, esta incorre em erro grosseiro: seja esquecendo que o mais minucioso detalhamento biográfico perde necessariamente a essência da postura subjetiva, seja não observando que a recorrência textual reiterada, na verdade, funciona como defesa contra a experiência reflexiva que o próprio texto visava suscitar, faltando propriamente a ambas a demonstração de uma experiência discursiva radical. Ambas têm em comum um projeto de cunho museológico e é nessa medida que quando se visita o Freud Museum, em Maresfield Gardens, em Londres, onde Freud passou exilado o final da vida, não podemos nos furtar de supor o que o próprio Freud pensaria daquilo tudo. Uma carta de 23/04/33 a Roy Winn nos permite tecer conjecturas pouco ambíguas: “Seus votos de me escrever uma autobiografia mais íntima não têm probabilidade de realizar-se. Já achei muito mobilizante evocar determinado número de circunstâncias pessoais (exibicionismo) para escrever A interpretação dos sonhos, e não creio que alguém extraísse grande coisa de tal publicação. Pessoalmente, só peço ao mundo que me deixe em paz e, em vez disso, dedique seu interesse à psicanálise”.
Freud esteve à frente de seus contemporâneos, o que teve como efeito fazer com que a essencialidade de seu projeto permanecesse à deriva ao longo do século e só emergisse com mais virulência – embora ainda não toda da qual se mostra capaz – nas últimas décadas. Sua obra conseguiu sobreviver ao demorado processo de mortificação a que foi submetida, graças à medicalização e à psicologização norte-americana como também em toda parte onde a prática psicanalítica teve sua existência monopolizada pela International Psychoanalytical Association (IPA). Os fundamentos de sua experiência restaram fossilizados, incubados talvez pudéssemos dizer.
Tais fundamentos residem primordialmente numa concepção inteiramente inovadora da sexualidade humana, assim como numa descoberta da principalidade do determinismo inconsciente, que causaram escândalo sobretudo pela razão com que foram abordados. Uma nova razão, até hoje pouco compreendida, posto que extravasa os pressupostos da lógica clássica e introduz uma ternariedade estrutural definitória do inconsciente.
A teoria freudiana da sexualidade, por exemplo, incompatível com o moralismo normativizante a que foi reduzida até a intervenção do psicanalista francês Jacques Lacan no campo teórico, é um elemento nuclear para a compreensão da especificidade da existência humana. Nela, a noção de pulsão ocupa lugar proeminente, pois, distinta do instinto que é desencadeado ciclicamente nos animais, a energia pulsional surge como uma força constante, endógena, logo, alheia aos estímulos externos e impossível de ser eliminada. Dito de outro modo, a sexualidade humana acha-se espraiada por todas as manifestações discursivas, não importa quais sejam elas. Assim, para Freud, o sexo não se reduz ao ato sexual, mas, antes disso, é um dado contínuo, inarredável e constitutivo da experiência humana em geral. Nada mais contrário ao pensamento freudiano que essa suposição psicologizante de uma espécie de moral na natureza com a qual os psicanalistas pós-freudianos quiseram nutrir seus ideais de harmonia e felicidade.
A tese freudiana do determinismo inconsciente deu origem ao livro A psicopatologia da vida cotidiana (1901), cujo título mesmo provoca espanto: pois como pensar numa patologia cotidiana, senão subvertendo a um só tempo a própria noção do que seja patológico? Aí vai uma dimensão radical introduzida por Freud que, girando em torno da questão do sentido dos sintomas de suas pacientes histéricas, acaba por ampliar o espectro de ação de sua abordagem para estendê-lo àqueles fenômenos que se acham presentes em todo e qualquer sujeito – sonhos, chistes, atos falhos, esquecimentos etc. Quanto a esses, trata-se igualmente para Freud de poder restituir o sentido a eles inerente, embora ocultado pela ação deformadora da censura. Sua descoberta revela, por detrás de tais ocorrências, a ação contínua de um desejo que é carreado por uma fantasia sexual de cunho primordialmente infantil, cuja significação a análise permite fazer emergir.
A radicalidade da descoberta freudiana do inconsciente, que determina todos nossos atos, tendências e vontades de modo absoluto, pode ser resumida do seguinte modo: o homem sonha incessantemente, esteja dormindo ou acordado, pois também nesse caso sua relação com o mundo é mediatizada pela fantasia. Dito de outro modo, sonho e realidade têm, para a psicanálise, idêntica estrutura. Tocamos aí no objetivo maior da cura analítica: o despertar. Ainda que o limiar pétreo constituído pela fantasia e pela linguagem não possa ser franqueado, ele pode vir a ser objeto de uma dialetização tal que dele retire o poder alienante, mesmo que não chegue a desconstituir seu caráter fundante para o sujeito.
Assim, permitindo ao sujeito resgatar aqueles elementos que presidiram sua própria gênese, a análise permite deslocá-los enquanto instância suprema. Ela pretende, em seu término, destituir o sujeito desses ancoramentos simbólicos e imaginários mais originais, retirar o extremo sentido de que estão, e não sem razão, imbuídos, e assim dar ao sujeito algum acesso ao real: para além do Nome, atingir aquilo que, mais importante, subjaz na base mesma do processo de nomeação. Despertando o sujeito do profundo sonho no qual se achava mergulhado e que dava algum sentido a sua vida, a experiência analítica lhe permite reinventar o sentido, pluralizá-lo e adquirir uma liberdade que é congruente com uma entrega radical a tudo aquilo que porventura possa vir do real.
Surge assim o criador, insatisfeito com o já criado e partícipe do ato mesmo da criação, o qual com sua obra constitui de imediato uma dívida, pois ao arrancar o novo do real compromete nesse ato a todos os homens, posto que o real a todos concerne. Desse modo, como no dizer de Nietszche, despertar é tornar-se criança, e também aqui o que Freud chamou de “sabedoria maior da língua” obtém excelente exemplificação: pensamos na identidade etimológica em nossa língua dos termos criar, do latim creare, e criança, creantia.
Atinge-se aqui algo que é preciso desvelar como sendo intrínseco ao projeto freudiano: a excelência do humano. Isto no intuito de maximizar a potência de determinados setores do pensamento freudiano que dizem respeito à aplicação da psicanálise às questões do mundo.
Exemplar disso é o ensaio sobre O futuro de uma ilusão (1927), no qual Freud propõe explicitamente que a psicanálise deve vir a poder deslocar a religião do lugar que ela tem ocupado para a humanidade. Contudo, tal proposta freudiana tem sido relegada ao esquecimento. Nesse ensaio, Freud aborda o problema da origem da religião considerando as idéias religiosas como ilusões provenientes, sobretudo, da necessidade de defesa dos homens contra as forças superiores da natureza. Freud situa a raiz da religião no estado de desamparo vivido pela criança na primeira infância, estado esse que sendo revivido pelo adulto nas mais diversas circunstâncias ao longo da vida e não mais podendo contar com a proteção outrora oferecida pelos pais, requer a crença na figura de um Pai protetor todo-poderoso. Assim, a religião constitui uma espécie de neurose da infância da humanidade, a “neurose obsessiva universal da humanidade”, e, tal como a neurose obsessiva das crianças, surgiu do complexo de Édipo e do relacionamento com o pai. Considerando os ensinamentos religiosos como verdadeiras relíquias neuróticas, Freud postula que é chegado o momento de crescimento do homem, que permitirá infalivelmente o afastamento da religião.
Nunca seria demasiado sublinhar o papel fundamental desempenhado por Jacques Lacan nessa tarefa de restaurar a verdade do pensamento freudiano, numa época em que os institutos e formação psicanalítica da IPA tinham na obra de Freud uma referência absolutamente secundária, para não dizer nula. Mas muito ainda resta a ser feito e o ato lacaniano de tomar para si as questões mais candentes da subjetividade deve ser retomado hoje numa perspectiva que redescubra as vertentes do pensamento de Freud voltadas para a coletividade humana, que aguardam que lhes seja dada uma maior conseqüência. É nesse sentido que, entre nós, M.D. Magno tem falado, hoje, da necessidade de se promover um retorno de Freud, via Lacan, ao mesmo tempo que cuidado de desinibir progressivamente o trato da psicanálise com outros discursos emergentes na contemporaneidade. Foi também nessa mesma direção que Lacan fez a seus discípulos, em seu derradeiro seminário proferido em Caracas, uma indicação cujo aparente paradoxo deveria suscitar reflexão. Disse ele então: “Cabe a vocês serem lacanianos. Quanto a mim, sou freudiano”.
Freud faleceu há cinqüenta anos, mas seu pensamento sobreviveu a duras penas às resistências do século, obtendo hoje, na aurora do século vindouro, uma revificação tal que nos permite apostar no fato de que o futuro é freudiano.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

VIOLÊNCIA E DISCURSO




"Não há direito que não se escreva sobre corpos. Ele domina o corpo. A própria idéia de um indivíduo isolável do grupo se instaurou com a necessidade, sentida pela justiça penal, de corpos que devem ser marcados por um castigo e, pelo direito matrimonial, de corpos que se devem marcar com um preço nas transações entre coletividades"
– Michel De Certeau, 2001.


"Diz-se que a letra mata quando o espírito vivifica [...] mas nós também perguntamos como o espírito viveria sem a letra. As pretensões do espírito, no entanto, permaneceriam irredutíveis, se a letra não tivesse provado que ela produz todos os seus efeitos de verdade no homem sem que o espírito tenha que se intrometer minimamente nisso. Essa revelação se fez ela mesma a Freud, e ele chamou sua descoberta de inconsciente".- Jacques Lacan, Escritos

A violência é o que as sociedades carregam de pior. Nada é mais uniformemente detestável pela modernidade e pós-modernidade do que a prática da violência. Paradoxalmente, a violência é praticada, de formas variadas, em qualquer sociedade. A história da humanidade é escrita em nossos livros com uma ênfase nos grandes atos violentos praticados através dos tempos. A história particular de cada um também pode ser marcada pelos atos violentos sofridos.

A violência, muitas vezes, parece estar situada no limite do suportável. Um limite que marca uma diferença de lugares. Uma prática violenta necessariamente manifesta uma diferença. Nesta manifestação da diferença de posições podemos fazer a hipótese de que se trata de um jogo de reconhecimento. Podemos pensar esta suposição nas guerras, atos terroristas, assassinatos, roubos, brigas com vizinhos, cônjuge, sócio, etc. Após o ato violento temos uma definição de lugares. O que não se refere somente à posição de agressor e de vítima ou vencedor e perdedor. Esta definição diz respeito ao fato de que, depois de cometida a violência, as coisas mudam, um limite aparece, mesmo que provisório. Além disso, o ato violento carrega algo de explicitamente irreversível. Talvez por isso se preste tão bem para marcar as datas de nossa história. O que aparece como irreversível se conjuga com irrepresentável. Em todo ato violento resta um resto injustificável discursivamente. O ato pode ser nomeado, explicado e exemplificado, porém para ser considerado violento ele deve conter algo que escapa a representação. Nós vivemos tentando representar a violência, mas bem sabemos que a representação da violência não é a violência, basta ver o sucesso deste tipo de filmes, livros, o próprio cotidiano de nossa televisão. O ato violento contém algo que escapa a representação, mas que produz representações diversas.

[…]  O que a violência tem de real, de irrepresentável, de impossível? Nada é fácil neste campo. Como escrever sobre o irrepresentável? Começaremos com a morte, vivemos tentando representá-la, para tanto não faltam religiões, a ciência ou a arte. Por vezes chegamos a pensar que justamente o irrepresentável da morte é o motor que mantém a produção destas três.

Normalmente não queremos saber sobre a morte, mas é fato que todo ser vivo morre. A morte é o resultado da vida. A maneira como cada um vive aponta a forma como cada um vai morrer, ela vai se apresentando no decorrer da vida e nós podemos encontrá-la no trabalho, crime, esporte radical, nas estradas, num gesto mais lento, num gesto mais rápido, na comida, no sexo, na apatia, debilitação orgânica, etc. Porém, a experiência da morte é algo que nos escapa. Podemos experimentar a morte do outros, de pessoas que gostamos ou que nem conhecemos, porém a nossa própria morte, que nos aguarda em algum lugar, desta, nós não temos a experiência. O que quer dizer que quando ela vier vai ser algo de novo, digamos uma surpresa.

A questão vai e vem, mas sempre acaba na morte. Não conseguimos escapar dela. Freud no texto "Das Unheimliche" [em Português com o título: ‘O estranho’] aponta que "nenhum ser humano realmente a compreende, e o nosso inconsciente tem tão pouco uso hoje, como sempre teve, para idéia da sua própria mortalidade". Na nossa sociedade o alívio da dor relativa à morte de alguém que gostamos, normalmente é buscado na religião. […] parece que todas as religiões se baseiam em uma vida após a morte. Lacan vai dizer no seminário VI, […], que a morte de alguém que gostamos causa um furo no real que nenhum significante consegue preencher. É necessário todo o conjunto de significantes para o trabalho do luto. Sempre que a morte se apresenta, não enquanto representação, mas no que ela tem de irrepresentável, ela exige um grande esforço psíquico. A morte do outro de alguma forma faz elo com a morte própria de cada um. Segundo Freud, "uma vez que quase todos nós ainda pensamos como selvagens acerca desse tópico (morte), não é motivo para surpresa o fato de que o primitivo medo da morte é ainda tão intenso dentro de nós e está sempre pronto a vir à superfície por qualquer provocação".

Neste texto, "Das Heimliche", Freud faz uma pesquisa procurando delimitar os vários significados que a palavra heimlich tem no alemão, entre os quais está familiar, íntimo, lugar livre da influência de fantasmas, algo oculto e perigoso, afastado do conhecimento, assustador. Ele vai escrever que “heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que coincide com seu oposto unheimlich”. Freud então vai nos apresentar o significado de estranhamento familiar como sendo o unheimlich.

Um certo estranhamento ocorre quando nos deparamos com a morte ou com alguma violência que carrega o irrepresentável, quando somos protagonistas de uma cena violenta e recebemos o impacto de algo que nos causa uma certa estranheza, o que por vezes pode dar uma sensação de irrealidade, como se aquilo não estivesse acontecendo conosco. Quem já foi assaltado e teve a vida ameaçada, quem sofreu um acidente de carro no qual pessoas se feriram tem uma idéia desse estranhamento. Mas por que familiar? Não se trata de um familiar que se dá pela repetição da cena, mas porque o que está em jogo é algo de muito intimo para cada um. A intimidade, vocês sabem, é algo de corporal. Como coloca Freud, "pode ser verdade que o estranho seja algo que é secretamente familiar, que foi submetido a repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa condição". Ainda neste texto Freud faz notar que "um estranho efeito se apresenta quando se extingue a distinção entre imaginação e realidade, como quando algo que até então considerávamos imaginário surge diante de nós na realidade (...)".

Seguindo esse caminho Lacan manifesta sua opinião dizendo que:
"O Unheimlich não está ligado, como alguns acreditavam, a todos os tipos de irrupção do inconsciente. Está ligado a esta espécie de desequilíbrio que se produz no fantasma, e portanto, o fantasma, atravessando os limites que lhe são primeiramente consignados, se decompõe e vem a reencontrar isto pelo que ele se junta a imagem do outro."

O fantasma se conjuga pela relação do sujeito diante do objeto causa do desejo. Pela teoria lacaniana o objeto causa do desejo, objeto a, é o que vem a ocupar o lugar de uma perda que é constitutiva do sujeito na sua relação com a linguagem. Para falar o sujeito sacrifica algo. O que ele perde é a possibilidade de uma relação direta com o real, o que ocorrerá necessariamente via representação, ou para sermos mais específicos, via discurso. A relação do sujeito com o mundo, a partir dessa perda, vai se dar sempre via discurso. O que vem a ocupar o lugar do que foi sacrificado é o objeto causa do desejo, que em uma dada conjuntura imaginária, diante do sujeito, possibilita a produção do fantasma que suporta o próprio desejo. O que se apresenta nesta lógica é que não existe realidade pré-discursiva. Toda realidade se funda em um discurso. Portanto existem tantas realidades quantos discursos existirem, mas somente um real.


Uma das formas de abordarmos o tema da violência é este ponto de tensão entre o real e as possíveis realidades. Aceitando a hipótese de que a violência tem algo de irrepresentável, irreversível e, portanto, do real, deveremos por consequência aceitar que alguma coisa nos escapa quando tentamos discursar sobre este tema assim com estamos fazendo agora. Então, se não existe realidade pré-discursiva e se a violência carrega em si o irrepresentável podemos supor que o que conhecemos como violências são manifestações derivadas de determinados discursos que tendem a um lugar no qual o discurso não se sustenta enquanto produtor de realidades. Isso quer dizer que a violência toma corpo quando o discurso falta.

Vocês poderiam contrapor dizendo que existem discursos violentos. Não discordamos neste ponto. Porém os discursos violentos não são da mesma ordem que a violência, esta aponta um limite do discurso, mesmo sendo produto de um discurso. Podemos, por exemplo, analisar os insultos ou os apagamentos subjetivos produzidos via discurso. Mas a violência somente vai se dar quando o discurso tocar no limite do irrepresentável.


Vocês ainda poderiam dizer: sobre o que não temos acesso não podemos falar e que é através do discurso que conhecemos a violência e desta forma a violência é um discurso. Porém, todos nós entendemos que uma coisa é o ato violento […] e outra coisa é o que falamos e escrevemos sobre este ato. Também sabemos que a história se faz a partir do que escrevemos e não sobre o ato em si. Então uma história, particular como acontece na clínica, da civilização como acontece nos livros é sempre sobre o que se escreveu, falou, sobre o que se perdeu. Isso não invalida a história, pois através da escrita disso que se perdeu mantêm-se a possibilidade de levarmos o acontecimento para mais adiante. A questão que pretendemos colocar para vocês com relação a pensarmos a violência pode se centrar no que entendemos por discurso. Um ato pode ser considerado um discurso? Bin Laden, líder de um famoso grupo terrorista, ao se referir ao atentado de 11 de setembro de 2001 disse em um vídeo exibido mundialmente, após o atentado, que aquele era um discurso que todos entenderiam, independentemente da origem ou língua que cada um possa estar ligado. Um ataque terrorista ao centro econômico do mundo, símbolo de poder, as famosas torres gêmeas de Nova York. Mas por que Bin Laden ainda precisou aparecer em um vídeo discursando sobre o atentado?

Talvez, aqui, se faça necessária uma distinção entre escrita violenta e escrita da violência. Por exemplo, uma carta que leva escrito um dizer "mate o portador" como a que foi destinada a Hamlet e que ele astuciosamente reenvia a dupla de amigos/inimigos Rosencratz e Guideltern pode ser considerada uma espécie de violência, mas a escrita, o conto de Shakespeare não é uma violência. Por essa via nós podemos pensar algumas questões sobre os programas de televisão violentos. A escrita da violência não é o mesmo que a violência. Os filmes de televisão que mostram a violência não são a violência, neste lugar a violência já está simbolizada, ela não nos causa tanto estranhamento.

A violência nos mostra a nossa fragilidade diante do outro. O simbólico, devido a sua característica inevitavelmente social concerne força, pela união, aos humanos. Ao mesmo tempo o simbólico nos possibilita a lei.

A lei não se faz pelo que ela significa. Por exemplo, a lei "Não matarás" pode ter vários sentidos: Não matarás quem? Quando? De que forma? Atualmente o direito e a justiça se ocupam do significado das leis, da sua operacionalidade. Esta não é a ocupação da psicanálise. Para ela o significado da lei não é a questão, mas a forma como a lei articula as possibilidades de gozo. A psicanálise não se ocupa do significado da lei. Como por exemplo: não ultrapasse o limite de velocidade. A ocupação da psicanálise está mais voltada para o significante lei, ou seja, o que a lei articula na sociedade e que afeta o sujeito. Digamos que a psicanálise está interessada neste NÃO implícito em toda lei. O que conta é o caráter de interdição da lei. O que interessa não é o enunciado, mas sua capacidade de interdição. Essa capacidade de interdição é discursiva, de modo que a lei vai ser um resultado deste discurso. Se o discurso que funda a realidade social não sustenta determinada lei ela não vai ser efetiva.
Como estamos circundando o NÃO e a LEI, seguindo a psicanálise teremos que abordar a noção de PAI. A paternidade é um efeito de reconhecimento. Somente é possível ocupar o lugar de pai se alguém o colocar neste lugar. Freud chegou a explicitar que pai é quem é reconhecido como merecedor do amor. Existe um ditado popular que diz que a maternidade é certa e a paternidade incerta. Quando Freud aborda a história de Édipo Rei, escrita por Sófocles, ele aponta que o pai ocupa o lugar de terceiro na relação da mãe com filho, um terceiro que simboliza a entrada da criança no mundo social, na linguagem, no desejo. Isso porque esse pai, enquanto uma metáfora, vem a representar a impossibilidade de completude para a criança. Ela não é tudo nem tem tudo, por isso ela tem que falar, pedir reconhecimento ao outro. O que possibilita a criança desejar é a metáfora paterna, e uma metáfora é a substituição de uma palavra por outra. O pai, enquanto terceiro, possibilita esse deslizamento que gera condições de substituirmos pai, mãe, seio, etc, por outros elementos da vida.

Não é necessário muito esforço para ligarmos uma série de atos considerados violentos - tais como: atentados terroristas, assassinato de familiares, brigas de vizinhos e até mesmo as guerras protagonizadas por grandes potências mundiais, o crime organizado em países nos quais a diferença de classes sociais é muito acentuada - a um forte pedido de reconhecimento.

Como bem sabemos uma lei se constitui na possibilidade de repetição, portanto é necessária uma língua para se ter uma lei. A língua é parte do discurso. A lei é anterior a escrita, mas pela escrita a lei encontrou uma maneira forte de se estabelecer. Supostamente sem equívocos. Quando se diz está escrito, isso nos parece do nível de uma certeza. O que é interessante de termos na idéia é que a lei escrita tal como a conhecemos vem depois, por isso que não resolve mudarmos a forma de escrita, novas leis, mais leis, menos leis na busca de uma lei que fosse perfeita, sem equívocos. No que diz respeito a língua é impossível não existir equívocos, justamente por existir um real da língua […].

De nada adianta construirmos novas leis se não há sustentabilidade discursiva para elas. Não adianta dizermos "Tu não podes matar", se existe um discurso que sustenta essa morte. Que seja o reconhecimento por isso, ou seja, um lugar desejado no social, em uma dada realidade, que se suporta em um discurso. Imaginemos um criminoso, um assassino, a partir do momento em que ele transgride, ele passa a ter uma escritura no corpo, ou seja, ele passa a ser reconhecido, perseguido, capturado, preso. Paradoxalmente quando ele é retirado fisicamente da sociedade ele passa a fazer parte da simbólica desta sociedade, ele vai para o jornal, para a televisão. O preço de uma pertença pode ser até a morte, e nós sabemos que isso não é incomum, está nas nossas histórias de mártires, na religião. Conforme Michel De Certeau (2001, p. 232): 

"O sofrimento de ser escrito pela lei do grupo vem estranhamente acompanhado por um prazer, o de ser reconhecido (mas não se sabe por quem), de se tornar uma palavra identificável e legível numa língua social, de ser mudado em fragmento de um texto anônimo, de ser inscrito numa simbólica sem dono e sem autor". 
          - CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

O que nós temos até aqui é que é através da lei, um limite, que se chega ao reconhecimento, pois somente podemos ser Um quando nos diferenciamos do Outro. Também temos que a lei se escreve sobre o corpo. Mas como nós havíamos visto naquele primeiro momento sobre o estranhamento familiar causado a partir de uma violência podemos supor que este sentimento vem do encontro com o real. Será que podemos supor que o serve de interligação, de solda, entre a violência e a lei é propriamente o corpo, o gozo e a morte, os três do real como coloca Lacan no Seminário XXI ?




Por Fernando Hartmann - 25/09/2006
Imagens: GOOGLE



terça-feira, 12 de abril de 2011

SEDUÇÕES ÍNTIMAS


Meias de seda, sutiãs que realçam as formas dos seios, cintas-liga e calcinhas sensuais fazem mais que despertar a fantasia sexual: revelam preferências, desejos e medos de quem os usa ou os admira


por Paola Emilia Cicerone .


Há peças de roupa feminina que servem para cobrir, proteger ou esquentar – e existem aquelas que escolhemos para instigar o prazer daqueles que desejamos atrair. Qualquer que seja a motivação da escolha, aquilo que vestimos – ainda que junto à pele, longe do olhar da maioria das pessoas – faz revelações sobre nossos medos e fantasias. Embora hoje as rendas e os lacinhos já não estejam tão escondidos, até há poucos anos sutiãs, calcinhas, combinações, anáguas e corpetes, sempre em cores discretas, eram encontrados apenas em lojas de armarinhos ou nas prateleiras dispostas disfarçadamente nas grandes lojas. Atualmente a roupa íntima é um fenômeno de moda presente em campanhas publicitárias famosas; tornou-se um aspecto da cultura. Quem não se lembra, por exemplo, do comercial dos anos 80 cujo tema era o “primeiro sutiã”, ou do advento do modelo wonderbra, que inaugurou as curvas falsas? 
 
Imagem: © Theresa Tibbetts/iStockphoto

“Essas peças estão em uma posição ‘intermediária’ entre a pele e o tecido das roupas comuns; é essa carga simbólica que faz com que um corselete cause um impacto visual muito diferente daquele provocado por um maiô inteiro, que também cobre – ou deixa de cobrir – exatamente a mesma extensão do corpo de uma mulher”, afirma o semiólogo Ugo Volli, pesquisador da Universidade de Turim. Até o século 18, porém, eram os homens que usavam meias e ligas para deixar as pernas e até os genitais à mostra. As calcinhas também são uma invenção moderna. “No passado, acreditava-se que a mulher deveria ser ‘aberta embaixo’, uma ideia que ainda permanece disfarçadamente presente no imaginário erótico e é expressa por meio de imagens como a de Sharon Stone no filme Instinto selvagem, de 1992”, ressalta Volli. Segundo o estudioso de sistemas de signos e símbolos, essa crença, que estimula a fantasia de descobrir algo “secreto”, pode explicar por que os homens preferem, por exemplo, as meias femininas que vão até a altura das coxas, em vez dos modelos inteiriços.

“O fascínio da roupa íntima está na brincadeira do vejo/não vejo que atrai a atenção para as zonas erógenas, o que faz com que estar vestido seja, em geral, mais erótico que ver o corpo completamente nu”, afirma o psicólogo e terapeuta de casais Giuseppe Rescaldina.

O pesquisador dinamarquês Per Ostergaard lembra que, em certas situações, usar determinada roupa é uma espécie de ritual, um momento de passagem: há peças que, na intimidade, despertam o imaginário erótico e permitem ao casal encarnar o que ele chama de “personagens de si mesmos”. Em geral a renda branca, por exemplo, evoca a ideia de pureza; já a cor preta costuma ser associada à ideia de mistério e sofisticação. Para grande parte das pessoas o vermelho vivo lembra tanto sensualidade quanto transgressão, enquanto estampas que imitam pele de animais podem remeter ao erotismo e à sensualidade. Embora não haja consenso, fatores culturais também entram em jogo, e persiste um imaginário erótico constantemente incrementado pela mídia. O fato é que a roupa íntima “fala de nós” e nos permite viver diferentes papéis. Talvez por isso a renda transparente, o corselete e as meias 7/8 continuem sendo tão atraentes por tantas décadas. Embora a tecnologia proponha cortes e tecidos confortáveis outrora inimagináveis, as imagens que realmente seduzem são as da roupa íntima que parece ser usada justamente para ser tirada.


 Fonte:  Revista Mente e Cérebro - edição 219 - Abril 2011

sábado, 9 de abril de 2011

VOCÊ ESTÁ EM ANÁLISE?


A sociedade contemporânea possui uma gama de mudanças significativas quando a questão é o comportamento humano. Nossa época exige um novo conceito de análise

Por Jorge Forbes


Fazer análise hoje é igual aos tempos de Freud? Sim e não. Sim, no que tange ao fundamento do inconsciente; não, na diferença de sua expressão. Desde Freud até muito recentemente, digamos há uns trinta anos, fazer análise era se conhecer melhor e, por isso, agir de maneira menos infestada de comprometimentos psicopatológicos. O se "conhecer melhor" se obtinha na análise do Complexo de Édipo, matriz da significação do comportamento humano, verdadeiro software genial que Freud inventou para entender como uma pessoa pode operar o hardware mundo, que não lhe é em nada natural. Por quase cem anos acreditamos que o mundo era edípico, e era mesmo, se edípico é um mundo que institui um padrão de significação vertical e superior, no caso, o Pai. O paciente de ontem, por viver em um mundo padronizado, sabia onde queria chegar e se perguntava sobre o que lhe amarrava a sua vida, daí o foco no passado. Entramos, agora, em uma nova configuração do laço social: a globalização privilegia a horizontalidade sobre a verticalidade constituindo uma sociedade em rede, muito distinta da piramidal da qual nos afastamos no bonde da História. Se hoje o Édipo ainda funciona, sua abrangência de leitura do fenômeno humano é mais restrita e, em decorrência, uma clínica nele centrado também o é. Necessitamos de uma clínica além do Édipo. O paciente de hoje, mais que do passado, quer saber do seu futuro. Ele não se pergunta o que o impede de chegar a um objetivo, pois o problema, quando se quebram os padrões, é saber qual é o seu objetivo entre as inúmeras possibilidades, fato que o angustia. Paradoxalmente, uma análise vai lhe mostrar que há um limite ao conhecimento e que fazer uma análise não é conhecer mais, mas se defrontar com o impossível de tudo saber, frente ao qual só resta uma possibilidade: a de inventar uma solução e a de publicá-la, suportando o risco de seu desejo. Uma análise hoje, pós-edípica, deverá ser capaz de transformar a angústia imobilizadora em criativa; a rigidez em flexibilidade; a moral da necessidade em ética do desejo.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Jacques Lacan e a Psicanálise do Século XXI




Jorge Forbes é psicanalista e médico psiquiatra, em São Paulo. Mestre e doutor em Psicanálise; Universidade de Paris VIII e Universidade Federal do Rio de Janeiro, respectivamente.

É um dos principais introdutores do pensamento de Jacques Lacan no Brasil, de quem frequentou os seminários em Paris, de 1976 a 1981. Teve participação fundamental na criação da Escola Brasileira de Psicanálise, da qual foi o primeiro diretor-geral.

Preside o IPLA - Instituto da Psicanálise Lacaniana e o Projeto Análise (www.projetoanalise.com.br). Dirige a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano - USP.

É "A.M.E." Analista Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Escola Européia de Psicanálise.

Tem vários artigos publicados no Brasil e no Exterior e é autor, dentre outros livros, de Você Quer o Que Deseja?, em que trata de uma psicanálise além do Édipo, própria ao novo homem desbussolado da globalização e é co-autor de A Invenção do Futuro, em que pensa soluções para viver nessa nova era de quebra dos ideais. Também colabora frequentemente com a grande imprensa, sendo curador e conferencista do Café Filosófico da CPFL - TV Cultura (vídeos: http://migre.me/diXB ). Tem sido consultado por empresas, hospitais e escolas.


domingo, 3 de abril de 2011

O Suicídio Nosso de Cada Dia...



A clínica psicanalítica está atenta ao discurso do cotidiano. Na narrativa do “varejo do dia a dia” o analista tem sua escuta dirigida para as brechas discursivas, que expressam a manifestação do inconsciente e permitem o acesso às possibilidades de emergência de um material novo e da diferença.
[...]
Sabemos que o sujeito se relaciona com a morte desde sempre, já que esta é uma relação constitutiva. Em sua direção à linguagem é como morto, como representante da falta, que entrará no jogo da cadeia significante. Seja qual for sua história, haverá sempre uma perda irreparável: houve um corte estrutural, que marcou uma distância irredutível, que se traduzirá em um indizível. E assim o sujeito é colocado, estrategicamente, a interrogar a força que vem de um lugar denominado inconsciente, um lugar que se estrutura como uma linguagem. Lacan destaca que “o sujeito se realiza na perda em que surgiu como inconsciente, pela falta que produz no Outro”. (Lacan, 1998)
Aprendemos com Freud que a representação da própria morte escapa ao sujeito. “Nossa própria morte não nos pode ser representada e, quanto mais tentarmos representá-la, mais observaremos que, na realidade, continuaremos apenas como espectadores”. (Freud, 1915 a)
Em Luto e Melancolia Freud anotou que “o sujeito só pode se matar... se puder tratar a si mesmo como um objeto”. Mais adiante, na segunda tópica, ao lançar mão das instâncias do eu, ideal do eu e supereu, avança na questão ao tratar da tirania do supereu na exaltação do sentimento de culpa.
Depois, em 1924, em O problema econômico do masoquismo, [...] Freud afirmou que o sentimento de culpa é o problema mais importante do desenvolvimento cultural. O melhor tratamento para a instigante expressão “sentimento inconsciente de culpa” seria, de fato, “necessidade de punição”. Já que a culpa é sempre uma culpa recordada, ela seria encenada pelo Destino, o porta-voz oficial das figuras parentais. A autodestruição, uma vez levada às vias de fato, virá sempre atravessada por uma carga implícita de satisfação libidinal.

“Penso onde não sou, logo sou onde não penso”


Podemos ler no ato suicida uma investida radical e apaixonada de construção da subjetividade, questão fundamental que foge à compreensão do próprio sujeito no momento de sua execução. [...]
Segundo François Ansermet, o suicídio é atravessado por um paradoxo: o sujeito se suicida por medo da morte, ou seja, salva-se evitando a si mesmo, tentando fugir de si mesmo, procurando na morte uma saída para a vida.
Sendo assim, nem todo suicida tem necessariamente a morte como objetivo. Há como que uma antinomia entre ato e pensamento. Normalmente o suicida não tem o que dizer sobre sua tentativa, já que ela toma o lugar de toda e qualquer palavra. Seu ato, no entanto, não deixa de trazer implícita a questão vida x morte, presença x ausência, fazendo com que o desencadear do ato permaneça enigmático.
Toda tentativa de suicídio poderia ser compreendida como o ponto crucial de uma decisão de ser, que propiciará, na maioria das vezes, sua repetição, mesmo como apenas uma tentativa a mais. Mas há aqueles cuja vontade de destruição os ultrapassa, não sendo possível impedi-los de sucumbir, mais dia menos dia, a seu destino de desaparecimento.
Se o pensamento é atravessado via de regra pela dúvida, no caso do suicídio, da passagem ao ato, ao contrário, há o signo da certeza. O ato é em si mesmo uma passagem. Somente em um segundo tempo, a posteriori, lembra Ansermet, o ato pode ser eventualmente recuperado por uma significação: mas o ato não tem depois, é indiferente a seu futuro. O suicida parece ter de ejetar-se para se inscrever no mundo. É fundamentalmente uma fabricação, uma engenharia, um salto no Outro: numa tentativa de dar sentido para si, busca uma saída fatal em direção à vida.
A passagem ao ato tem por objetivo tamponar um vazio, como uma atividade “que reproduz um passado ao invés de rememorá-lo em palavras. Trata-se de restos, restos de uma dialética que se dá pela palavra, já que não pôde se dar senão pela ação”. (Garcia-Roza, 1990)
Ao se procurar, o sujeito só pode se achar num único lugar: no registro simbólico. O suicídio pode ser lido como tentativa radical de fazer liame com a ordem simbólica, como uma busca de reintegração visando solucionar o impasse desse resto não simbolizado que é a vida. [...]
Lacan chama atenção para o fato de que o ato suicida, em um curtocircuito, vai ao encontro dessa zona, a um só tempo central e excluída do mundo subjetivo, chamada de gozo. O gozo neste caso já não se satisfaz mais no sintoma. Situando-se para além do fechamento do ego, vai em direção a algo cada vez mais trancafiado, supondo uma temporalidade diferente. Não há gozo sem a experiência de um fragmento do tempo, mas o tempo aí é, radicalmente, tempo real, em sua positividade. É a experiência de uma plenitude que se prende ao próprio tempo, muito longe de aboli-lo. Ele se produz no corpo, é inteiramente corpo. E aí o que permanece, insiste, repete, “o que não cessa de não se inscrever”, é o vazio, a identificação com o nada, esse lugar de objeto a que não é passível de simbolização.
Lacan definiu o suicídio como “o único ato que tem êxito sem falhas”. Na construção de um novo texto onde, através do desnudar-se, começa a recontar sua história, o sujeito se aglutina com a falta estrutural e “se entrega às mãos da morte”.

A pulsão de morte e o silêncio

Lacan destaca em 1981, no número 3 da Revista L’Ane que a vida, em non-sense, aspira à morte: na medida em que, encarnada no corpo, aspira a uma plena consciência, isto é, o despertar absoluto, este, por sua vez, só se dá do lado da morte. “Durante o período vital não se desperta jamais porque os desejos entretêm os sonhos, inclusive os sonhos de despertar, donde a morte seria na vida um sonho entre outros”. (Lacan, 1981)
A noção de pulsão de morte possui uma natureza conservadora que faz sintonia com a fórmula segundo a qual uma pulsão tende para o retorno a um estado anterior. Esse caráter conservador da pulsão de morte está em relação direta com seu aspecto repetitivo, e será esse referido caráter que dará origem à disposição para a compulsão à repetição.
Porém, no O seminário 7, destaca que, ao lado dessa natureza conservadora, a pulsão de morte deve ser entendida também como uma vontade de destruição direta, onde a agressividade, com a qual aparece normalmente articulada, seria apenas um efeito. A pulsão de morte é aquilo que de dentro do sujeito é levado para fora. Devemos entender vontade de destruição como disposição para um recomeço, já que o que se repete é um significante. A repetição é sempre de uma certa estrutura, que podemos precisar como “significante”, um significante, por sua vez, marcado, de saída, por uma negatividade, que é justamente a da pulsão de morte.
Logo, é a pulsão de morte, ao mesmo tempo potência destrutiva e princípio disjuntivo, que impede que a repetição seja do mesmo (impede a permanência de totalidades), provocando, ao contrário, pela disjunção, a emergência de novas formas. Ela é, portanto, acima de tudo, criadora e não conservadora, posto que impõe novos começos. Repetição não significa reprodução.
[...]
Para Freud (1915) a metáfora do trabalho da pulsão de morte é a de um silêncio ativo ou de um rumor mudo: ela é reconhecível no fato de que “trabalha sem ruído”. [..] “a pulsão de morte trabalha de modo mudo no interior do ser vivo”. Enquanto “agindo no interior como pulsão de morte, ela permanece muda” - em meio ao ruído da vida, não é ouvida.
Já com Lacan diremos, apenas de outro modo, que a pulsão de morte traz seus elementos reunidos no grito. Trata-se do grito como uma expressão da voz, uma vez privada da condição de ser objeto para o desejo do Outro. O grito dá passagem para o silêncio: constitui o abismo onde o silêncio se precipita, diz Lacan. Ele afirma não ter encontrado nada melhor para ilustrar o silêncio do que o grito. [...]
Sabemos todos que os resultados da clínica psicanalítica devem-se não só ao poder das palavras, mas também ao poder do silêncio. Mas queremos tratar aqui em específico dos silêncios autônomos, daqueles onde há ausência de rememoração e de associações, fora de qualquer repetição significante.
Falamos daqueles silêncios que aparecem como que colados às palavras que são ditas com uma voz particular, como que arrancada. São pesados silêncios, que acompanham os excessos de palavras, palavras com excesso de gozo. Durante estes silêncios, nada cairia; o corpo estaria por demais presente e não poderia esquecer-se. Tentariam assim cercar a forte intensidade psíquica, localizar uma energia não-ligada, a fim de que “as palavras não transferissem seus investimentos uns nos outros, sem resto”, e que a “intensidade psíquica dessa realidade não se tornasse intensa demais...”
David Nasio sintetiza essa questão com propriedade: “O silêncio, do inconsciente, faz discurso numa recusa, num assassinato mesmo: o assassinato do desejo. A experiência precoce da morte se transmuta, por falta de cumprir o luto, em denegação da morte do grande Outro”.

E para concluir: onde estão os segredos?

Encontramos hoje novas demandas e novas modalidades de expressão de sofrimento. A clínica da contemporaneidade se defronta com a queda da Função Paterna como sustentação de resposta à existência do sujeito. Com as inúmeras ofertas e avanços da psicofarmacologia, nega-se a causalidade psíquica diante do mal-estar, ou seja, o sujeito é excluído do enfrentamento de sua dor de existir: ele mantém o gozo e não experimenta a falta. A angústia é rapidamente eliminada pelo medicamento, pela droga ou pelo consumo. Trata-se do vigor do mercado do gozo.
Em tempos de cultura do narcisismo e de sociedade do espetáculo, decididamente não há o menor espaço para a particularidade, uma vez que, em determinadas situações, a mínima diferença passa a significar risco de vida. Hans Magnus Enzensberger, em A Guerra Civil, lembra que para além da agressão dirigida ao outro, está aquela que explode frente à vida desprezível que se leva. Hanna Arendt aponta que, para os criminosos, viver ou morrer, terem nascido ou não, são fatos da mesma ordem. Não há como explicar o impulso para a autodestruição pela via somente da violência. É mais do que isso, está em um lugar mais além. Aproximando-nos da abordagem antropológica de Marc Augé, podemos apostar mesmo nas condições atuais para uma etnologia da solidão.
Ainda com Enzenberger, há como que um “estado de demência coletiva”, ao mesmo tempo assassina e suicida, onde a categoria do futuro simplesmente desapareceu. Somente o tempo presente... está presente.
Responsabilidades deixam de existir, e assim, neutraliza-se a atividade reguladora do instinto de preservação da vida. Deste modo são novas também as formas de suicídio na sociedade contemporânea, onde a generalização da noção de passagem ao ato parece não dar conta da questão. Trata-se de uma outra versão do suicídio, trata-se de uma outra morte. Por conta de uma nítida banalização da vida cotidiana, não há mais lugar para os segredos. Há como que uma exteriorização e uma revelação do interior e do cotidiano, onde nada é transgressivo, não há subversões, não há brechas. Uma história é criada para dar consistência e estabilidade à vida, e passamos a perceber a ordem social como coerente, sem antagonismos. Não há limites: tudo é aceito, a permissividade é total.
O corpo, silencioso e dissecado, deve atender à exibição, apropriado e inflado de significação. E assim há uma espécie de assassinato diário do desejo que tem o valor cotidiano de um suicídio.
[...]
É a dor do desamparo. Por desfazer-se no anonimato, evitando ao máximo revelar quem realmente é, o sujeito desconhece sua verdade. A individualidade absoluta torna-se impensável, já que o eu passa a ser um dos elementos da identidade partilhada, onde encontra sustentação um gozo coerente com as alegrias passivas diante da impossibilidade de um recorte da identificação. As relações entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo são atravessadas por um discurso completamente sintomatizado, erguendo-se um véu de imagens gerador de desconhecimento subjetivo. O que caracteriza a produção da inflação do Imaginário não é a ausência do Simbólico, mas o torná-lo desconhecido, inacessível.
Repetindo Mallarmé, “não se faz poesia com as idéias, mas com as palavras” e, prosseguindo, lembramos Lacan quando ele adverte que a sustentação do bem dizer é uma das saídas pra a dor de existir. Dito de outro modo, a saída é continuar buscando aquilo que sabemos estar para sempre perdido.
Foucault faz uma equivalência da dor de existir com a perda de si. Joel Birman aponta que talvez se possa constituir uma nova modalidade de clínica, voltada, ainda com Foucault, para o cuidado de si, “como tradição ética, através do conhecer a si mesmo”. Birman prossegue afirmando que o acima referido desamparo “coloca em questão alguns dos pressupostos da teoria psicanalítica, principalmente quando esta se orienta pelo imperativo ético do saber de si. As novas formas de subjetivação, que se apresentam agora no mundo contemporâneo..., exibem no seu corpo, nos seus dilaceramentos e nas suas feridas o descentramento trágico da subjetividade que foi formulado pelo discurso freudiano no enunciado dos conceitos de inconsciente, de pulsão e de pulsão de morte”.(Birman, 2000)
A clínica psicanalítica faz requerimento para novos estudos que propiciem um renascimento cotidiano, um nascimento nosso a cada dia, pois o campo de outra experiência ética e estética se delineia agora no nosso horizonte, dirigida a um tempo próprio e trágico, qual seja o tempo freudiano: o futuro anterior. Pois, já que o prazer é sempre uma possibilidade, o sujeito poderá trilhar o caminho da arte/psicanálise. [...]
Texto de Daisy Justus (2003) - Adaptado.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Ecce Homo

Como entender a masculinidade moderna, sem os velhos moldes de força e firmeza, se até mesmo os próprios homens estão perdidos, sem saber se ainda abrem ou não o famoso pote de azeitonas?

Por Jorge Forbes



Não se fazem mais homens como antigamente”, reclama a velha senhora na soleira de sua porta, ao ver chegar o amigo da sua neta, encostando o carro. Arrumado demais, combinado demais, manso demais, indeciso demais, enfi m – ela não quer confessar, mas caraminhola baixinho – o moço lhe parece feminino demais. 

A velha senhora tem alguma razão em observar que os homens, hoje, não são feitos da mesma maneira da qual ela estava habituada. Intuitivamente, ela nota – mesmo que não aceite – que a identidade humana é maleável, que muda conforme o tempo, abraçando o relevo da paisagem de sua época.

Estamos assistindo a uma mudança de um período no qual o laço social que era vertical, gerando estruturas piramidais – o que provocava o estabelecimento de relações hierárquicas e padronizadas – passa a uma nova situação, na qual as relações humanas são horizontais e múltiplas, em tudo, muito diferentes dos modelos estáveis anteriores. No que toca à identidade masculina, ela passou de uma infl exibilidade poderosa, coerente com a verticalidade disciplinar do mundo de ontem, para uma participação interativa fl exível, exigência do tempo presente. Traduzindo em miúdos: um homem era visto, caricaturado e admirado como alguém forte e fi rme em suas decisões – sem frescuras, sem dúvidas, sem titubeios – infl exível em sua vontade pétrea, como se elogiava barrocamente. Agora, nesses novos tempos, mais importante que dar ordens é convencer e seduzir; melhor que ser sempre igual, é mostrar-se criativo, respondendo diferentemente, conforme o aspecto de cada situação. Para as novas exigências, a carapaça do típico macho envelheceu, se despregou do seu corpo, caiu, e ele se vê tão perdido quanto cobra trocando de pele, ou siri que fi cou nu e tem medo de ser catado. Reage atordoado procurando novas formas de ser e aparecer que lhe devolvam a segurança perdida; hipertrofi a os traços machistas em academias fabricantes de abdomens tanquinhos, ao mesmo tempo em que vai perdendo a vergonha de confessar seu interesse no melhor creme, na cirurgia plástica, na mais atraente e chocante combinação de roupa.

PARA AS NOVAS EXIGÊNCIAS, A CARAPAÇA
DO TÍPICO MACHO ENVELHECEU,
SE DESPREGOU DO SEU CORPO, CAIU,
E ELE SE VÊ TÃO PERDIDO QUANTO
COBRA TROCANDO DE PELE

Pobres homens, a pós-modernidade não lhes é em nada tranquila. Enquanto as mulheres nadam de braçadas, pois o detalhe, a singularidade, o inusitado – características próprias à horizontalidade despadronizada – são a sua praia, os homens sofrem, se angustiam, por se verem sem a bússola do dever bem definido que lhes orientava tão corretamente e, tanto quanto aquela velha senhora, também desconfiam de sua própria sexualidade. Buscam os mais diversos consolos, alguns bem engraçados e paradoxais, como os grupos do Bolinha: confrarias das mais diversas, mais comuns as de vinho e as de comida, que, sob o manto disfarçador do refinamento do gosto, escondem a mais básica vontade de perguntarem uns para os outros como cada qual está se virando diante dessa verdadeira revolução. Isso, quando não contratam treinamentos supostamente disciplinadores e eficientes de tropas de elite, que tentam loucamente instalar em suas empresas, onde gostam de se travestir em generais incontestados, fazendo que os funcionários incomodados “peçam para sair”, tal como aprenderam naquele filme de sucesso. 

Pouco a pouco, ficará claro para a maioria que a masculinidade não se baseia em nenhum grupo de iguais – sejam eles confrarias ou exércitos –, mas, tudo ao contrário, na possibilidade de suportar a expectativa da diferença, aquela representada pelo enigma de uma mulher frente a um homem. De nada vai lhe adiantar querer calá-la – ou calá-lo, o enigma – com alguma resposta pronta do gênero de bolsas ou perfumes de marcas supostamente exclusivas – mas em algo tão singelo, quão difícil: sabendo fazê-la rir, sonhar, se surpreender. Ecce Homo.

Jorge Forbes é psicanalista e médico psiquiatra. É Analista Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (A.M.E.), Preside o IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana e dirige a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da USP.


Fonte: Revista Psique - Edição nº 63