A clínica psicanalítica está atenta ao discurso do cotidiano. Na narrativa do “varejo do dia a dia” o analista tem sua escuta dirigida para as brechas discursivas, que expressam a manifestação do inconsciente e permitem o acesso às possibilidades de emergência de um material novo e da diferença.
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Sabemos que o sujeito se relaciona com a morte desde sempre, já que esta é uma relação constitutiva. Em sua direção à linguagem é como morto, como representante da falta, que entrará no jogo da cadeia significante. Seja qual for sua história, haverá sempre uma perda irreparável: houve um corte estrutural, que marcou uma distância irredutível, que se traduzirá em um indizível. E assim o sujeito é colocado, estrategicamente, a interrogar a força que vem de um lugar denominado inconsciente, um lugar que se estrutura como uma linguagem. Lacan destaca que “o sujeito se realiza na perda em que surgiu como inconsciente, pela falta que produz no Outro”. (Lacan, 1998)
Aprendemos com Freud que a representação da própria morte escapa ao sujeito. “Nossa própria morte não nos pode ser representada e, quanto mais tentarmos representá-la, mais observaremos que, na realidade, continuaremos apenas como espectadores”. (Freud, 1915 a)
Em Luto e Melancolia Freud anotou que “o sujeito só pode se matar... se puder tratar a si mesmo como um objeto”. Mais adiante, na segunda tópica, ao lançar mão das instâncias do eu, ideal do eu e supereu, avança na questão ao tratar da tirania do supereu na exaltação do sentimento de culpa.
Depois, em 1924, em O problema econômico do masoquismo, [...] Freud afirmou que o sentimento de culpa é o problema mais importante do desenvolvimento cultural. O melhor tratamento para a instigante expressão “sentimento inconsciente de culpa” seria, de fato, “necessidade de punição”. Já que a culpa é sempre uma culpa recordada, ela seria encenada pelo Destino, o porta-voz oficial das figuras parentais. A autodestruição, uma vez levada às vias de fato, virá sempre atravessada por uma carga implícita de satisfação libidinal.
“Penso onde não sou, logo sou onde não penso”
Podemos ler no ato suicida uma investida radical e apaixonada de construção da subjetividade, questão fundamental que foge à compreensão do próprio sujeito no momento de sua execução. [...]
Segundo François Ansermet, o suicídio é atravessado por um paradoxo: o sujeito se suicida por medo da morte, ou seja, salva-se evitando a si mesmo, tentando fugir de si mesmo, procurando na morte uma saída para a vida.
Sendo assim, nem todo suicida tem necessariamente a morte como objetivo. Há como que uma antinomia entre ato e pensamento. Normalmente o suicida não tem o que dizer sobre sua tentativa, já que ela toma o lugar de toda e qualquer palavra. Seu ato, no entanto, não deixa de trazer implícita a questão vida x morte, presença x ausência, fazendo com que o desencadear do ato permaneça enigmático.
Toda tentativa de suicídio poderia ser compreendida como o ponto crucial de uma decisão de ser, que propiciará, na maioria das vezes, sua repetição, mesmo como apenas uma tentativa a mais. Mas há aqueles cuja vontade de destruição os ultrapassa, não sendo possível impedi-los de sucumbir, mais dia menos dia, a seu destino de desaparecimento.
Se o pensamento é atravessado via de regra pela dúvida, no caso do suicídio, da passagem ao ato, ao contrário, há o signo da certeza. O ato é em si mesmo uma passagem. Somente em um segundo tempo, a posteriori, lembra Ansermet, o ato pode ser eventualmente recuperado por uma significação: mas o ato não tem depois, é indiferente a seu futuro. O suicida parece ter de ejetar-se para se inscrever no mundo. É fundamentalmente uma fabricação, uma engenharia, um salto no Outro: numa tentativa de dar sentido para si, busca uma saída fatal em direção à vida.
A passagem ao ato tem por objetivo tamponar um vazio, como uma atividade “que reproduz um passado ao invés de rememorá-lo em palavras. Trata-se de restos, restos de uma dialética que se dá pela palavra, já que não pôde se dar senão pela ação”. (Garcia-Roza, 1990)
Ao se procurar, o sujeito só pode se achar num único lugar: no registro simbólico. O suicídio pode ser lido como tentativa radical de fazer liame com a ordem simbólica, como uma busca de reintegração visando solucionar o impasse desse resto não simbolizado que é a vida. [...]
Lacan chama atenção para o fato de que o ato suicida, em um curtocircuito, vai ao encontro dessa zona, a um só tempo central e excluída do mundo subjetivo, chamada de gozo. O gozo neste caso já não se satisfaz mais no sintoma. Situando-se para além do fechamento do ego, vai em direção a algo cada vez mais trancafiado, supondo uma temporalidade diferente. Não há gozo sem a experiência de um fragmento do tempo, mas o tempo aí é, radicalmente, tempo real, em sua positividade. É a experiência de uma plenitude que se prende ao próprio tempo, muito longe de aboli-lo. Ele se produz no corpo, é inteiramente corpo. E aí o que permanece, insiste, repete, “o que não cessa de não se inscrever”, é o vazio, a identificação com o nada, esse lugar de objeto a que não é passível de simbolização.
Lacan definiu o suicídio como “o único ato que tem êxito sem falhas”. Na construção de um novo texto onde, através do desnudar-se, começa a recontar sua história, o sujeito se aglutina com a falta estrutural e “se entrega às mãos da morte”.
A pulsão de morte e o silêncio
Lacan destaca em 1981, no número 3 da Revista L’Ane que a vida, em non-sense, aspira à morte: na medida em que, encarnada no corpo, aspira a uma plena consciência, isto é, o despertar absoluto, este, por sua vez, só se dá do lado da morte. “Durante o período vital não se desperta jamais porque os desejos entretêm os sonhos, inclusive os sonhos de despertar, donde a morte seria na vida um sonho entre outros”. (Lacan, 1981)
A noção de pulsão de morte possui uma natureza conservadora que faz sintonia com a fórmula segundo a qual uma pulsão tende para o retorno a um estado anterior. Esse caráter conservador da pulsão de morte está em relação direta com seu aspecto repetitivo, e será esse referido caráter que dará origem à disposição para a compulsão à repetição.
Porém, no O seminário 7, destaca que, ao lado dessa natureza conservadora, a pulsão de morte deve ser entendida também como uma vontade de destruição direta, onde a agressividade, com a qual aparece normalmente articulada, seria apenas um efeito. A pulsão de morte é aquilo que de dentro do sujeito é levado para fora. Devemos entender vontade de destruição como disposição para um recomeço, já que o que se repete é um significante. A repetição é sempre de uma certa estrutura, que podemos precisar como “significante”, um significante, por sua vez, marcado, de saída, por uma negatividade, que é justamente a da pulsão de morte.
Logo, é a pulsão de morte, ao mesmo tempo potência destrutiva e princípio disjuntivo, que impede que a repetição seja do mesmo (impede a permanência de totalidades), provocando, ao contrário, pela disjunção, a emergência de novas formas. Ela é, portanto, acima de tudo, criadora e não conservadora, posto que impõe novos começos. Repetição não significa reprodução.
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Para Freud (1915) a metáfora do trabalho da pulsão de morte é a de um silêncio ativo ou de um rumor mudo: ela é reconhecível no fato de que “trabalha sem ruído”. [..] “a pulsão de morte trabalha de modo mudo no interior do ser vivo”. Enquanto “agindo no interior como pulsão de morte, ela permanece muda” - em meio ao ruído da vida, não é ouvida.
Já com Lacan diremos, apenas de outro modo, que a pulsão de morte traz seus elementos reunidos no grito. Trata-se do grito como uma expressão da voz, uma vez privada da condição de ser objeto para o desejo do Outro. O grito dá passagem para o silêncio: constitui o abismo onde o silêncio se precipita, diz Lacan. Ele afirma não ter encontrado nada melhor para ilustrar o silêncio do que o grito. [...]
Sabemos todos que os resultados da clínica psicanalítica devem-se não só ao poder das palavras, mas também ao poder do silêncio. Mas queremos tratar aqui em específico dos silêncios autônomos, daqueles onde há ausência de rememoração e de associações, fora de qualquer repetição significante.
Falamos daqueles silêncios que aparecem como que colados às palavras que são ditas com uma voz particular, como que arrancada. São pesados silêncios, que acompanham os excessos de palavras, palavras com excesso de gozo. Durante estes silêncios, nada cairia; o corpo estaria por demais presente e não poderia esquecer-se. Tentariam assim cercar a forte intensidade psíquica, localizar uma energia não-ligada, a fim de que “as palavras não transferissem seus investimentos uns nos outros, sem resto”, e que a “intensidade psíquica dessa realidade não se tornasse intensa demais...”
David Nasio sintetiza essa questão com propriedade: “O silêncio, do inconsciente, faz discurso numa recusa, num assassinato mesmo: o assassinato do desejo. A experiência precoce da morte se transmuta, por falta de cumprir o luto, em denegação da morte do grande Outro”.
E para concluir: onde estão os segredos?
Encontramos hoje novas demandas e novas modalidades de expressão de sofrimento. A clínica da contemporaneidade se defronta com a queda da Função Paterna como sustentação de resposta à existência do sujeito. Com as inúmeras ofertas e avanços da psicofarmacologia, nega-se a causalidade psíquica diante do mal-estar, ou seja, o sujeito é excluído do enfrentamento de sua dor de existir: ele mantém o gozo e não experimenta a falta. A angústia é rapidamente eliminada pelo medicamento, pela droga ou pelo consumo. Trata-se do vigor do mercado do gozo.
Em tempos de cultura do narcisismo e de sociedade do espetáculo, decididamente não há o menor espaço para a particularidade, uma vez que, em determinadas situações, a mínima diferença passa a significar risco de vida. Hans Magnus Enzensberger, em A Guerra Civil, lembra que para além da agressão dirigida ao outro, está aquela que explode frente à vida desprezível que se leva. Hanna Arendt aponta que, para os criminosos, viver ou morrer, terem nascido ou não, são fatos da mesma ordem. Não há como explicar o impulso para a autodestruição pela via somente da violência. É mais do que isso, está em um lugar mais além. Aproximando-nos da abordagem antropológica de Marc Augé, podemos apostar mesmo nas condições atuais para uma etnologia da solidão.
Ainda com Enzenberger, há como que um “estado de demência coletiva”, ao mesmo tempo assassina e suicida, onde a categoria do futuro simplesmente desapareceu. Somente o tempo presente... está presente.
Responsabilidades deixam de existir, e assim, neutraliza-se a atividade reguladora do instinto de preservação da vida. Deste modo são novas também as formas de suicídio na sociedade contemporânea, onde a generalização da noção de passagem ao ato parece não dar conta da questão. Trata-se de uma outra versão do suicídio, trata-se de uma outra morte. Por conta de uma nítida banalização da vida cotidiana, não há mais lugar para os segredos. Há como que uma exteriorização e uma revelação do interior e do cotidiano, onde nada é transgressivo, não há subversões, não há brechas. Uma história é criada para dar consistência e estabilidade à vida, e passamos a perceber a ordem social como coerente, sem antagonismos. Não há limites: tudo é aceito, a permissividade é total.
O corpo, silencioso e dissecado, deve atender à exibição, apropriado e inflado de significação. E assim há uma espécie de assassinato diário do desejo que tem o valor cotidiano de um suicídio.
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É a dor do desamparo. Por desfazer-se no anonimato, evitando ao máximo revelar quem realmente é, o sujeito desconhece sua verdade. A individualidade absoluta torna-se impensável, já que o eu passa a ser um dos elementos da identidade partilhada, onde encontra sustentação um gozo coerente com as alegrias passivas diante da impossibilidade de um recorte da identificação. As relações entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo são atravessadas por um discurso completamente sintomatizado, erguendo-se um véu de imagens gerador de desconhecimento subjetivo. O que caracteriza a produção da inflação do Imaginário não é a ausência do Simbólico, mas o torná-lo desconhecido, inacessível.
Repetindo Mallarmé, “não se faz poesia com as idéias, mas com as palavras” e, prosseguindo, lembramos Lacan quando ele adverte que a sustentação do bem dizer é uma das saídas pra a dor de existir. Dito de outro modo, a saída é continuar buscando aquilo que sabemos estar para sempre perdido.
Foucault faz uma equivalência da dor de existir com a perda de si. Joel Birman aponta que talvez se possa constituir uma nova modalidade de clínica, voltada, ainda com Foucault, para o cuidado de si, “como tradição ética, através do conhecer a si mesmo”. Birman prossegue afirmando que o acima referido desamparo “coloca em questão alguns dos pressupostos da teoria psicanalítica, principalmente quando esta se orienta pelo imperativo ético do saber de si. As novas formas de subjetivação, que se apresentam agora no mundo contemporâneo..., exibem no seu corpo, nos seus dilaceramentos e nas suas feridas o descentramento trágico da subjetividade que foi formulado pelo discurso freudiano no enunciado dos conceitos de inconsciente, de pulsão e de pulsão de morte”.(Birman, 2000)
A clínica psicanalítica faz requerimento para novos estudos que propiciem um renascimento cotidiano, um nascimento nosso a cada dia, pois o campo de outra experiência ética e estética se delineia agora no nosso horizonte, dirigida a um tempo próprio e trágico, qual seja o tempo freudiano: o futuro anterior. Pois, já que o prazer é sempre uma possibilidade, o sujeito poderá trilhar o caminho da arte/psicanálise. [...]
Texto de Daisy Justus (2003) - Adaptado.
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