Procurado pela Revista TPM, o
psicanalista Christian Dunker resolveu mergulhar no nojo feminino para entender
de onde vem esse mal contemporâneo
A mulher perfeita não tem cheiro, nem pelos, hálito, chulé ou gosto. Nojo delas mesmas?
Por Christian Ingo Lenz Dunker
Imagem: Revista TPM |
Muito genericamente, o
corpo nos diz quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Ele se torna tão
importante porque é também algo que imaginamos controlar, moldar e produzir
como imagem de nós mesmos, como queremos nos apresentar para o outro. E o
cheiro é um traço essencial de que há algo que não controlamos em nosso próprio
corpo. Podemos usar xampus, pós, cremes e perfumes, mas essas táticas se
degradam no tempo, são corrompidas por nosso suor, pelos odores do ambientes,
pela presença do cheiro do outro. O que varremos para baixo do tapete permanece
lá, escondido, invisível, mas aquilo que cheira mal, nos diz que mesmo estando
escondido se revela na forma de uma sensação genérica e mal definida. Nosso
cheiro diz, por isso mesmo, quem somos, para além do que queremos parecer. Isso
não quer dizer que temos uma essência odorífica, mas que justamente por
escapar, por ser mal definível, por ser um estranho dentro de nós mesmos,
atribuímos ao cheiro esse lugar fascinante e perigoso. É por isso que o filme O Cheiro do Ralo
(Heitor Dhalia, 2006) nos parece tão obsceno quanto atual.
Se na nossa cultura há uma
promessa de que, controlando nossas imagens, controlamos como o outro nos
percebe, aquilo que denuncia que as imagens enganam, ou seja, o cheiro,
torna-se um problema crucial. “Por fora bela viola, por dentro pão bolorento”.
A ideia do sabonete íntimo
é equivalente à tentativa de disciplinar as “partes pudentas” da mulher, de
forma que elas não se mostrem indóceis, incontroláveis ou denunciantes. É
interessante ver como, em geral, o sabonete íntimo cruza duas ideias ligadas ao
poder moral do cheiro.
Primeiro temos a ideia de
que as partes íntimas devem ser higienizadas, limpas. Esta é a ideia mais
antiga, que representa a sexualidade em analogia com o sujo, o impuro e o
doentio. A figura típica aqui é a da dona de casa, frustrada sexualmente, que
consagra sua existência à mania de limpeza, ordem e higienização. Como as mãos
de Lady MacBeth, que jamais são limpas do sangue do assassinato cometido, a
sexualidade expulsa pela porta da frente, retorna pela porta de trás, como um
cheiro, uma mancha, uma coisa mal definida. Hitchcock conseguiu por em imagens
esta força sem forma, excessiva e invasiva representada pelo cheiro em seu
filme Os
Pássaros (1963).
Mas a nova retórica dos
sabonetes íntimos recobre esta primeira figura com uma segunda ideia. Usar o
sabonete íntimo não é só uma maneira de controlar o cheiro aversivo, mas uma
forma de lembrarmo-nos que temos uma ... E que ela merece atenção, cuidado e
observação. Menos que uma vagina inodora, queremos aqui um cheiro específico,
que podemos escolher, controlar, variar. A imagem trazida aqui é a da mulher
que, mesmo menstruada, veste calça branca, faz ginástica e está disposta a
qualquer coisa.
CHEIRO SECRETO
O nojo é um dos chamados
sentimentos sociais, ou seja, depende da forma como aprendemos a dissociar em
nosso corpo o que é permitido do que é proibido, o prazer desejável do prazer
interditado. Freud dedicava grande importância ao nojo como afeto social muito
primitivo, tanto na história da criança, quanto na história de nossa cultura.
De fato relação com
secreções e excreções são as experiências originárias do nojo, e apontam para o
que deve ser excluído e escondido em nossa cultura e em nós mesmos. Por
exemplo, os alemães, povo tido como meticuloso e metódico, utilizam privadas
sanitárias nas quais os dejetos podem cair (em um recuo específico de
porcelana), aí serem inspecionados e, em seguida, levados pela água, segundo a
precisa deliberação do usuário. Já os franceses, povo mais político e dado à
controvérsia, dispensam este lugar reservado para coletar os dejetos, mas
permitem que a coisa flutue antes de ser abruptamente subtraída. Os japoneses,
culturalmente associados com a tecnologia, inventaram as privadas com duchas
automáticas, de tal forma que não é necessário ver e o mínimo de odor é
experimentado. Nós brasileiros, adoramos a turbulência excessiva e os
rodamoinhos pelo qual muita água deve ser escoada para limpar bem nossos
rastros.
Portanto, o nojo é sempre
primariamente de si, depois ele é depositado no outro. Freud fez uma afirmação
clínica muito forte sobre o nojo: “Toda vez que, diante de uma experiência
potencialmente sexual, encontramos no paciente o sentimento de nojo, não
hesitamos em diagnosticar a histeria”. Ou seja, o nojo como afeto deslocado, o
nojo excessivo, o nojo fora de lugar, aponta para um aspecto da sexualidade do
qual não queremos saber em nós mesmos.
Uma mulher percebida como
suja ou insuficientemente limpa é associada com alguém que coloca seu desejo
ativamente, que tem vontade de se sexualizar ou, inversamente, alguém que não
se importa com a opinião (e logo com o desejo) dos outros. Portanto, a
higienização feminina liga-se tanto ao processo de cuidar, de observar e de
tratar do próprio corpo (como satisfação intrínseca) quanto ao processo pelo
qual a mulher se apresenta como capaz de controlar seu corpo (logo sua
sexualidade), como um corpo que não foi tocado por outro (para a fantasia masculina
seria um corpo sem rastros) e como moralmente desejável.
Mas vale lembrar que um ser
humano essencialmente cheira. O cheiro é o rastro de suas experiências com os
outros e consigo mesmo. A obsessão de não ter cheiro é a expressão da negação
de nossa humanidade. É isso que nossa época parece pedir: “Seja intenso, viva a
vida e aproveite, mas ao mesmo tempo negue a sua própria humanidade e leve uma
vida líqüida: insípida, incolor e inodora.” Tome café, mas sem cafeína, coma
chocolate, mas sem açúcar, viva paixões, mas sem se perder, ou seja, viva a
vida, mas não seja humano.
Texto: Christian Dunker
Revista TPM
Impossível comentar sem refletir. Contudo, inegável.
ResponderExcluirTexto muito interessante!
ResponderExcluirGreicy Nunes
Ao ler essa reflexão, cheguei a seguinte conclusão: o autor quebrou mais que um tabu feminino, ele "rasgou" o verbo!!! Hahaha .. Tudo é conhecimento. Pq não se informar?
ResponderExcluirNojo de si mesma ou necessidade de agradar o outro?
ResponderExcluirfinalizou perfeitamente!!
ResponderExcluirFinal perfeito!!
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