Históricos da
web, torpedos mal apagados e e-mails equivocados são fontes permanentes de
devastação amorosa; a vida digital tornou o conceito de traição imensamente
mais elástico
por Christian Ingo
Lenz Dunker
Imagem: Gonçalo Viana |
Escrevi
os originais de meu mestrado em uma máquina de escrever. Tive um fax modem e joguei
Donkey Kong. Juro que já existiram pessoas pagando fortunas por um celular tipo
tijolo depois de esperar a vida toda por um telefone fixo. Sei o que é a
internet antes da banda larga. Vi, com estes olhos que a terra há de comer, o
primeiro video--clipe, se é que você pode imaginar um tempo no qual não existia
a MTV. Assisti à morte do vinil, da indústria fotográfica e fonográfica. Cala
fundo em mim a lenta agonia do CD. Sou da época em que computadores tinham
sólida e insuperável identidade: 286, 386, 486. Deveria haver algum privilégio
em ser da primeira geração, ou pelo menos algum orgulho de ter vivido alguma
coisa pela primeira vez.
O filme Meia-noite
em Paris, de Woody Allen (2011), explora
justamente esse fascínio retrospectivo causado pelas gerações que inventaram
coisas que pareciam fazer a vida valer a pena: a era áurea do jazz e do
surrealismo nos anos 20, o filme noir e suas divas
dos 40, o existencialismo sartriano do pós-guerra, a turma beatnik da
contracultura. Eu me contentaria em ter assistido ao Dark side
of the moon ou visto os
Beatles. Serve The Who ou Stones. Estaria satisfeito até mesmo com bossa-nova,
jovem guarda e tropicália. Se não for possível troco tudo por alguns seminários
de Lacan ou Foucault.
Pressinto que as gerações vindouras olharão para trás a nos
respeitar como aquela turma dos antológicos e inesquecíveis Google,
Facebook e Wikipedia. Somos os
primeiros a viver esta vida digital e os últimos a lembrar como éramos antes
disso. Mas será que alguém realmente vai cobiçar a experiência inédita de ver
aparecer na sua frente, magicamente, um e-mail? Antigamente havia uma
propaganda que dizia: o primeiro sutiã a gente nunca esquece. Se não me engano
foi vencedora do Leão de Ouro do festival de Cannes nos anos 80. A fórmula
funciona, mas não é por causa do sutiã, é por recuperar a força insondável, que
habita cada um de nós, em torno da primeira vez.
Somos absolutamente fiéis à primeira vez, para o bem e para o mal.
Acho que não foi por outro motivo que Freud estabeleceu esta regra de ouro
clínica de que é preciso prestar muita atenção às comunicações iniciais do
paciente. Fixar bem as primeiras sessões. Reter a forma precisa na qual algo é dito
pela primeira vez. Perto da primeira vez, as outras são apenas cópias impuras e
mal-acabadas. É por isso que o passado se torna nosso baú fetichista. Nele
podemos imaginar a primeira vez que presidiu a constelação de desejos que nos
concebeu. A forma mais pura e intangível da primeira vez, antes mesmo que ela
tenha existido para nós, a arquiprimeira vez, a mãe de todas as primeiras vezes.
Acontece que é difícil permanecer fiel a uma experiência cuja
verdade nos é desconhecida e, principalmente, uma coisa que parece feita para
destruir todas as fidelidades constituídas. No fundo, a maior parte desta
novidade que é a vida digital segue a máxima mais do
mesmo: trabalhar mais, mais rápido, mais interligado, mais
fácil, mais solitariamente – mesmo acompanhado. Mas há uma coisa na qual ela
realmente inovou: no modo de destruir fidelidades. Históricos da web, torpedos
mal apagados, e-mails equivocados são fontes permanentes de devastação amorosa.
A vida digital tornou o conceito de traição imensamente mais elástico, flexível
e discutível, disponibilizando o resgate nunca antes possível de figuras de
nosso histórico desejante mais longínquo. Ou seja, uma enxurrada de primeiras
vezes, para todos os gostos e sabores, do pré-primário ao colegial (leia-se
ensino médio). Espero que não, mas acho que seremos lembrados como a geração
que inventou a baixa fidelidade generalizada.
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista,
professor livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(USP).
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ééé... realmente essa avançada tecnologia chamada internet, apesar de nos trazer muitos benefícios, não está sendo utilizada de forma correta pela maioria das pessoas! Ás vezes chegam ao cúmulo de conversar no msn com pessoas da mesma casa, ou dar um FELIZ ANIVERSÁRIO pro próprio irmão pelo orkut!!
ResponderExcluirEstamos caindo numa rede de insensibilidades!!