sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O TRIUNFO DA MORBIDEZ?




Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.
– Clarice Lispector


O pensador francês Blaise Pascal, um dos mais influentes filósofos e cientistas da nossa cultura desde o século 17, dedicou boa parte de seu trabalho reflexivo aos temas que, dizia, vão além da capacidade humana de entendimento, repousando a inserção deles exclusivamente no terreno do místico e do insondável. Pascal exercitava o que chamamos (às vezes cinicamente) de “perscrutar a alma humana”, em busca de explicações sobre nós e o sentido daquilo que fazemos e, apreciador de aparentes paradoxos, dizia que “quando estamos de boa saúde, admiramo-nos de como seria possível estar doentes; quando isso acontece, medicamo-nos alegremente.”


Há uma extrema contemporaneidade nessa perspectiva pascaliana, principalmente agora, quando tratar de doença, em vez de consolidar a saúde, tornou-se uma rotina reconfortante. Aceita-se com tranquilidade, por exemplo, a ideia de que o stress agudo e suas outras decorrências faz parte da vida cotidiana e, dessa forma, sendo uma consequência da “normalidade” de nossa existência, é necessário absorver maneiras de coabitação com ele; tomar medicamentos (e trocar receitas e referências médicas) tornou-se uma obsessão e uma temática recorrente nas inúmeras situações de convívio que a vida extensamente urbana impõe.


Qualquer ocasião de encontro entre pessoas, fortuito ou intencional (no trabalho, nas festas, nos deslocamentos, nas filas, etc.), é suficiente para, com rapidez, ensejar um frenético escambo de posturas religiosas curativas, sugestões farmacológicas ou dietéticas, indicações profissionais especializadas e, claro, medidas eficazes de profilaxia laboral e espiritual, culminando com algumas hipócritas e falsas versões holísticas que prescrevem ervas cultivadas na terra (envenenada) como se fossem espécies de rosas de Hiroshima.
Assim, ocupamos uma boa parte do nosso tempo fora do mundo do trabalho – incessante e extenuante – cuidando das nossas doenças, só para podermos ficar momentaneamente aptos para continuar agindo do mesmo jeito que agíamos, e, portanto, conseguirmos melhores condições para fortalecer ainda mais as circunstâncias que nos deixam doentes...


Sigmund Freud, na segunda década do século 20, deixou de dar atenção estrita aos mecanismos de funcionamento do psiquismo individual e passou a dirigir o olhar psicanalítico (por ele fundado) também para os obstáculos da convivência humana em sociedades complexas; esse inédito esforço resultou, em 1930, na publicação da obra O mal-estar na civilização, na qual ele examina as razões pelas quais cada um de nós aceita reprimir as próprias bases constitutivas originais para sentir-se minimamente seguro em meio aos outros. Ou, como hoje diríamos, para ser socialmente aceito e coletivamente assimilado, vale até mesmo arcar com a custosa perda da autenticidade, da individualidade e da salubridade.


Vivemos agora a civilização do mal-estar? É provável; não estamos nos viciando em remédios, mas isso sim, em doenças que entendemos como normais, gerando uma passividade brutal, intensamente vivida em torno do patológico e da submissão ao poder sedutor do mórbido. Por isso, o arguto escritor irlandês Bernard Shaw (Nobel de Literatura em 1925) nos avisou: “Mens sana in corpore sano é uma máxima absurda. O corpo são é o produto do espírito são”.
A vida é curta para cuidar de tudo isso? Então, retomemos um contemporâneo e conterrâneo de Pascal, o ensaísta Jean de la Bruyère: “Aqueles que gastam mal o seu tempo são os primeiros a queixar-se de sua brevidade”.




Texto extraído do livro:
CORTELLA, Mario Sergio. Não nascemos prontos! : Provocações filosóficas. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009.


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Um comentário:

  1. Parabéns!!Muito Bom me fez analisar e refletir em como estou utilizando o meu tempo.
    Sônia A. Rodrigues

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