“Compreender é uma maneira de se reconciliar com o tempo
– não de se resignar ao que é, mas de tornar-se capaz de
acolher o que advém.”
Hannah Arendt
– não de se resignar ao que é, mas de tornar-se capaz de
acolher o que advém.”
Hannah Arendt
Sigmund
Freud viveu numa sociedade que exercia forte controle sobre o comportamento sexual
dos indivíduos, em especial das mulheres, que se sentiam culpadas, pecaminosas
e sujas ao verem brotar os desejos dentro de si. A repressão sexual era a base
para a neurose do tipo histeria que, particularmente na Europa ocidental, tornou-se
quase epidemia em todas as classes sociais: jovens mulheres apresentavam
quadros graves com desmaios, alterações de dupla personalidade, paralisias, convulsões.
Na sociedade de hoje, sexualmente liberalizada, aquelas neuroses clássicas dificilmente
são encontradas – por vezes em subgrupos específicos, como de religiosos onde o
controle da libido permanece intenso. “Mas vale acrescentar que Freud, sua
teoria e a psicanálise contribuíram muito para aumentar a tolerância e permitir
as realizações sexuais. É uma prova de que Freud está presente em nosso tempo”,
observa o psiquiatra e psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira, professor da
Faculdade de Ciências Médicas.
Se
as histerias dos tempos de Freud já não estão tão presentes, vale ressaltar que
as estatísticas no campo da psiquiatria mostram que as taxas de depressão crescem
sem parar. É evidente que o pensamento freudiano encontra desafios com as
marcas dos nossos tempos, como o debate com as neurociências, com o atual
sistema econômico neoliberal e a construção de subjetividades numa sociedade
globalizada. Nesse sentido, é importante considerar que a teoria e a
metodologia de Freud talvez sejam as únicas que se propõem a estudar a
subjetividade, tomando cada ser humano como singular, mesmo pertencendo ao grupo
genérico dos humanos.
Entre
os parâmetros ideais de hoje para que o indivíduo avalie sua vida estão o
trabalho, o dinheiro, a beleza, os bens de consumo, o sucesso. No entanto,
pouquíssimas pessoas alcançam estas metas, sendo que muitas já são
antecipadamente excluídas da corrida, impedidas sequer de sonhar com esses
ideais por causa das condições socioeconômicas. O preço para se atingir as
promessas de felicidade capitalista é a frustração, a angústia, o estresse, a
hipertensão, a crise de pânico. Há quem atinja e se dá conta de que não chegou ao
paraíso. Quem se vê excluído do processo, acha-se um ser humano de segunda
categoria e fica igualmente a um passo da depressão.
Do divã à pílula
Em
outra referência aos recursos modernos – quando Freud recorria às confidências do
divã, através do método da associação livre, o professor de Unicamp faz ressalvas
quanto ao uso, sobretudo ideológico, dos medicamentos disponíveis para aliviar
sintomas como mal-estar, depressão, ansiedade, insônia, impotência e para o controle
de sintomas psicóticos:
“As drogas são úteis do ponto de vista
clínico, mas as grandes questões humanas não se resumem à falta de Prozac. Uma
boa pílula não ataca os problemas concretos em nível existencial. Também é
verdade que, tecnicamente, estamos cada vez mais próximos da ‘pílula da
felicidade’, o que vai exigir uma avaliação dos aspectos éticos na introdução desse
tipo de droga, pois os conflitos e desejos humanos, enquanto ais, estão fora do
âmbito da farmacologia”. A propósito, Costa Pereira acrescenta que nunca houve
uma medicina tão baseada na ciência e tecnologia, cuja eficácia está
comprovada, mas que provoca sérios reflexos na clínica médica. “Temos cada vez
mais médicos especialistas, com conhecimentos que brotam das ciências naturais,
e menos a figura do médico que se preocupe com a dimensão humana da doença e o
sofrimento do paciente. Não é casual, portanto, o número sem precedentes de
pessoas de todas as classes sociais que estão recorrendo a curas alternativas e
espirituais – cristais, duendes, bruxarias. Novamente, vemos um sinal de que a
tecnologia dá resposta a problemas pontuais, mas deixa completamente intocadas
as grandes questões humanas, as quais emergem com toda sua intensidade justamente
no âmbito da prática médica”.
No
nosso sistema tempo é dinheiro, sendo que o serviço público ainda precisa dar
conta da grande demanda. Por outro lado, para a população, a figura do
profissional altamente especializado que recomenda exames sofisticados virou um
fetiche, quando a maior parte dos casos poderia ser resolvida no nível da
clínica geral. Introduzir no sistema o médico de família, que olhe o paciente
como um humano doente e não como um corpo biológico doente, é mais um desafio
para a política de saúde.
Mesmo com todos os avanços da medicina e da farmacologia, a
Psicanálise se mostra como uma das formas mais eficazes em busca do subjetivo. A
análise deve ser sentida como um espaço transicional, acolhedor, permitindo a
cada paciente criar e restaurar novos aspectos e nova linguagem para a sua
história. Assim, a análise possibilitará ao sujeito romper com as suas
fixações, superando os recalques, o que lhe permitirá a reconstrução de uma
nova história, recolocando o paciente diante da possibilidade de desejar de
forma diferente e criativa. Desconstruindo, o sujeito poderá vir a construir. Nas palavras da poetisa Cecília Meireles fica
uma reflexão para nosso mundo moderno: “A vida só é possível reinventada”.
Texto adaptado
de: Jornal
da UNICAMP – Agosto / 2006
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Renne dos Santos Nunes
Psicólogo