segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O QUE FREUD EXPLICA NOS DIAS DE HOJE?




“Compreender é uma maneira de se reconciliar com o tempo
– não de se resignar ao que é, mas de tornar-se capaz de
acolher o que advém.”

Hannah Arendt



Sigmund Freud viveu numa sociedade que exercia forte controle sobre o comportamento sexual dos indivíduos, em especial das mulheres, que se sentiam culpadas, pecaminosas e sujas ao verem brotar os desejos dentro de si. A repressão sexual era a base para a neurose do tipo histeria que, particularmente na Europa ocidental, tornou-se quase epidemia em todas as classes sociais: jovens mulheres apresentavam quadros graves com desmaios, alterações de dupla personalidade, paralisias, convulsões. Na sociedade de hoje, sexualmente liberalizada, aquelas neuroses clássicas dificilmente são encontradas – por vezes em subgrupos específicos, como de religiosos onde o controle da libido permanece intenso. “Mas vale acrescentar que Freud, sua teoria e a psicanálise contribuíram muito para aumentar a tolerância e permitir as realizações sexuais. É uma prova de que Freud está presente em nosso tempo”, observa o psiquiatra e psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira, professor da Faculdade de Ciências Médicas.
Se as histerias dos tempos de Freud já não estão tão presentes, vale ressaltar que as estatísticas no campo da psiquiatria mostram que as taxas de depressão crescem sem parar. É evidente que o pensamento freudiano encontra desafios com as marcas dos nossos tempos, como o debate com as neurociências, com o atual sistema econômico neoliberal e a construção de subjetividades numa sociedade globalizada. Nesse sentido, é importante considerar que a teoria e a metodologia de Freud talvez sejam as únicas que se propõem a estudar a subjetividade, tomando cada ser humano como singular, mesmo pertencendo ao grupo genérico dos humanos.
Entre os parâmetros ideais de hoje para que o indivíduo avalie sua vida estão o trabalho, o dinheiro, a beleza, os bens de consumo, o sucesso. No entanto, pouquíssimas pessoas alcançam estas metas, sendo que muitas já são antecipadamente excluídas da corrida, impedidas sequer de sonhar com esses ideais por causa das condições socioeconômicas. O preço para se atingir as promessas de felicidade capitalista é a frustração, a angústia, o estresse, a hipertensão, a crise de pânico. Há quem atinja e se dá conta de que não chegou ao paraíso. Quem se vê excluído do processo, acha-se um ser humano de segunda categoria e fica igualmente a um passo da depressão.  

Do divã à pílula


Em outra referência aos recursos modernos – quando Freud recorria às confidências do divã, através do método da associação livre, o professor de Unicamp faz ressalvas quanto ao uso, sobretudo ideológico, dos medicamentos disponíveis para aliviar sintomas como mal-estar, depressão, ansiedade, insônia, impotência e para o controle de sintomas psicóticos:

“As drogas são úteis do ponto de vista clínico, mas as grandes questões humanas não se resumem à falta de Prozac. Uma boa pílula não ataca os problemas concretos em nível existencial. Também é verdade que, tecnicamente, estamos cada vez mais próximos da ‘pílula da felicidade’, o que vai exigir uma avaliação dos aspectos éticos na introdução desse tipo de droga, pois os conflitos e desejos humanos, enquanto ais, estão fora do âmbito da farmacologia”. A propósito, Costa Pereira acrescenta que nunca houve uma medicina tão baseada na ciência e tecnologia, cuja eficácia está comprovada, mas que provoca sérios reflexos na clínica médica. “Temos cada vez mais médicos especialistas, com conhecimentos que brotam das ciências naturais, e menos a figura do médico que se preocupe com a dimensão humana da doença e o sofrimento do paciente. Não é casual, portanto, o número sem precedentes de pessoas de todas as classes sociais que estão recorrendo a curas alternativas e espirituais – cristais, duendes, bruxarias. Novamente, vemos um sinal de que a tecnologia dá resposta a problemas pontuais, mas deixa completamente intocadas as grandes questões humanas, as quais emergem com toda sua intensidade justamente no âmbito da prática médica”.

No nosso sistema tempo é dinheiro, sendo que o serviço público ainda precisa dar conta da grande demanda. Por outro lado, para a população, a figura do profissional altamente especializado que recomenda exames sofisticados virou um fetiche, quando a maior parte dos casos poderia ser resolvida no nível da clínica geral. Introduzir no sistema o médico de família, que olhe o paciente como um humano doente e não como um corpo biológico doente, é mais um desafio para a política de saúde.
Mesmo com todos os avanços da medicina e da farmacologia, a Psicanálise se mostra como uma das formas mais eficazes em busca do subjetivo. A análise deve ser sentida como um espaço transicional, acolhedor, permitindo a cada paciente criar e restaurar novos aspectos e nova linguagem para a sua história. Assim, a análise possibilitará ao sujeito romper com as suas fixações, superando os recalques, o que lhe permitirá a reconstrução de uma nova história, recolocando o paciente diante da possibilidade de desejar de forma diferente e criativa. Desconstruindo, o sujeito poderá vir a construir. Nas palavras da poetisa Cecília Meireles fica uma reflexão para nosso mundo moderno: “A vida só é possível reinventada”.

Texto adaptado de:  Jornal da UNICAMP – Agosto / 2006




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                                                                                             Renne dos Santos Nunes
                                                                                              Psicólogo

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

BAIXA FIDELIDADE


Históricos da web, torpedos mal apagados e e-mails equivocados são fontes permanentes de devastação amorosa; a vida digital tornou o conceito de traição imensamente mais elástico


por Christian Ingo Lenz Dunker


Imagem: Gonçalo Viana

Escrevi os originais de meu mestrado em uma máquina de escrever. Tive um fax modem e joguei Donkey Kong. Juro que já existiram pessoas pagando fortunas por um celular tipo tijolo depois de esperar a vida toda por um telefone fixo. Sei o que é a internet antes da banda larga. Vi, com estes olhos que a terra há de comer, o primeiro video--clipe, se é que você pode imaginar um tempo no qual não existia a MTV. Assisti à morte do vinil, da indústria fotográfica e fonográfica. Cala fundo em mim a lenta agonia do CD. Sou da época em que computadores tinham sólida e insuperável identidade: 286, 386, 486. Deveria haver algum privilégio em ser da primeira geração, ou pelo menos algum orgulho de ter vivido alguma coisa pela primeira vez.
O filme Meia-noite em Paris, de Woody Allen (2011), explora justamente esse fascínio retrospectivo causado pelas gerações que inventaram coisas que pareciam fazer a vida valer a pena: a era áurea do jazz e do surrealismo nos anos 20, o filme noir e suas divas dos 40, o existencialismo sartriano do pós-guerra, a turma beatnik da contracultura. Eu me contentaria em ter assistido ao Dark side of the moon ou visto os Beatles. Serve The Who ou Stones. Estaria satisfeito até mesmo com bossa-nova, jovem guarda e tropicália. Se não for possível troco tudo por alguns seminários de Lacan ou Foucault. 
Pressinto que as gerações vindouras olharão para trás a nos respeitar como aquela turma dos antológicos e inesquecíveis Google, Facebook e Wikipedia. Somos os primeiros a viver esta vida digital e os últimos a lembrar como éramos antes disso. Mas será que alguém realmente vai cobiçar a experiência inédita de ver aparecer na sua frente, magicamente, um e-mail? Antigamente havia uma propaganda que dizia: o primeiro sutiã a gente nunca esquece. Se não me engano foi vencedora do Leão de Ouro do festival de Cannes nos anos 80. A fórmula funciona, mas não é por causa do sutiã, é por recuperar a força insondável, que habita cada um de nós, em torno da primeira vez. 
Somos absolutamente fiéis à primeira vez, para o bem e para o mal. Acho que não foi por outro motivo que Freud estabeleceu esta regra de ouro clínica de que é preciso prestar muita atenção às comunicações iniciais do paciente. Fixar bem as primeiras sessões. Reter a forma precisa na qual algo é dito pela primeira vez. Perto da primeira vez, as outras são apenas cópias impuras e mal-acabadas. É por isso que o passado se torna nosso baú fetichista. Nele podemos imaginar a primeira vez que presidiu a constelação de desejos que nos concebeu. A forma mais pura e intangível da primeira vez, antes mesmo que ela tenha existido para nós, a arquiprimeira vez, a mãe de todas as primeiras vezes.
Acontece que é difícil permanecer fiel a uma experiência cuja verdade nos é desconhecida e, principalmente, uma coisa que parece feita para destruir todas as fidelidades constituídas. No fundo, a maior parte desta novidade que é a vida digital segue a máxima mais do mesmo: trabalhar mais, mais rápido, mais interligado, mais fácil, mais solitariamente – mesmo acompanhado. Mas há uma coisa na qual ela realmente inovou: no modo de destruir fidelidades. Históricos da web, torpedos mal apagados, e-mails equivocados são fontes permanentes de devastação amorosa. A vida digital tornou o conceito de traição imensamente mais elástico, flexível e discutível, disponibilizando o resgate nunca antes possível de figuras de nosso histórico desejante mais longínquo. Ou seja, uma enxurrada de primeiras vezes, para todos os gostos e sabores, do pré-primário ao colegial (leia-se ensino médio). Espero que não, mas acho que seremos lembrados como a geração que inventou a baixa fidelidade generalizada. 




Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).






 
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