quinta-feira, 10 de janeiro de 2013
sábado, 29 de dezembro de 2012
A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?
Psychologies Magazine, outubro 2008, n° 278
Entrevista a Jacques-Alain Miller realizada por Hanna Waar
Psychologies: A psicanálise
ensina alguma coisa sobre o amor?
Jacques-Alain Miller: Muito, pois é uma experiência cuja fonte é o amor.
Trata-se desse amor automático, e freqüentemente inconsciente, que o analisando
dirige ao analista e que se chama transferência. É um amor fictício, mas é do
mesmo estofo que o amor verdadeiro. Ele atualiza sua mecânica: o amor se dirige
àquele que a senhora pensa que conhece sua verdade verdadeira. Porém, o amor
permite imaginar que essa verdade será amável, agradável, enquanto ela é, de
fato, difícil de suportar.
P.: Então, o que é amar
verdadeiramente?
J-A Miller: Amar verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo, se alcançará a
uma verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma
resposta, à nossa questão "Quem sou eu?".
P.: Por que alguns sabem amar e outros não?
J-A Miller: Alguns sabem provocar o amor no outro, os serial lovers - se posso
dizer - homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar.
Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas.
Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade
do outro, que ele lhe falta. Os que crêem ser completos sozinhos, ou querem
ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem
os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias.
P.: "Ser completo
sozinho”: só um homem pode acreditar nisso...
J-A Miller: Acertou!
"Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem". O que quer dizer: amar é
reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se
possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si
mesmo. Para isso, é preciso se assegurar de sua falta, de sua
"castração", como dizia Freud. E isso é essencialmente feminino. Só
se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina. Amar feminiza. É por
isso que o amor é sempre um pouco cômico em um homem. Porém, se ele se deixa
intimidar pelo ridículo, é que, na realidade, não está seguro de sua
virilidade.
P.: Amar seria mais
difícil para os homens?
J-A Miller: Ah, sim! Mesmo
um homem enamorado tem retornos de orgulho, assaltos de agressividade contra o
objeto de seu amor, porque esse amor o coloca na posição de incompletude, de
dependência. É por isso que pode desejar as mulheres que não ama, a fim de
reencontrar a posição viril que coloca em suspensão quando ama. Esse princípio
Freud denominou a "degradação da vida amorosa" no homem: a cisão do
amor e do desejo sexual.
P.: E nas mulheres?
J-A Miller: É menos
habitual. No caso mais freqüente há desdobramento do parceiro masculino. De um
lado, está o amante que as faz gozar e que elas desejam, porém, há também o
homem do amor, feminizado, funcionalmente castrado. Entretanto, não é a
anatomia que comanda: existem as mulheres que adotam uma posição masculina. E
cada vez mais. Um homem para o amor, em casa; e homens para o gozo, encontrados
na Internet, na rua, no trem...
P.: Por que "cada
vez mais"?
J-A Miller: Os estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade
estão em plena mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a
amar, a se feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo
“empuxo-ao-homem”: em nome da igualdade jurídica são conduzidas a repetir “eu
também”. Ao mesmo tempo, os homossexuais reivindicam os direitos e os símbolos
dos héteros, como casamento e filiação. Donde uma grande instabilidade dos
papéis, uma fluidez generalizada do teatro do amor, que contrasta com a fixidez
de antigamente. O amor se torna “líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman. Cada um é levado a inventar seu próprio “estilo de vida” e a assumir seu
modo de gozar e de amar. Os cenários tradicionais caem em lento desuso. A
pressão social para neles se conformar não desapareceu, mas está em baixa.
P.: “O amor é sempre recíproco”, dizia Lacan. Isso ainda é verdade no
contexto atual? O que significa?
J-A Miller: Repete-se esta frase sem compreendê-la ou compreendendo-a mal. Ela
não quer dizer que é suficiente amar alguém para que ele vos ame. Isso seria
absurdo. Quer dizer: “Se eu te amo é que tu és amável. Sou eu que amo, mas tu,
tu também estás envolvido, porque há em ti alguma coisa que me faz te amar. É
recíproco porque existe um vai-e-vem: o amor que tenho por ti é efeito do
retorno da causa do amor que tu és para mim. Portanto, tu não estás aí à toa.
Meu amor por ti não é só assunto meu, mas teu também. Meu amor diz alguma coisa
de ti que talvez tu mesmo não conheças”. Isso não assegura, de forma alguma,
que ao amor de um responderá o amor do outro: isso, quando isso se produz, é
sempre da ordem do milagre, não é calculável por antecipação.
P.: Não se encontra seu
‘cada um’, sua ‘cada uma’ por acaso. Por que ele? Por que ela?
J-A Miller: Existe o que Freud chamou de Liebesbedingung, a condição do amor,
a causa do desejo. É um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem
para cada um função determinante na escolha amorosa. Isto escapa totalmente às
neurociências, porque é próprio de cada um, tem a ver com sua história singular
e íntima. Traços às vezes ínfimos estão em jogo. Freud, por exemplo, assinalou
como causa do desejo em um de seus pacientes um brilho de luz no nariz de uma
mulher!
P.: É difícil acreditar em um amor fundado nesses elementos sem valor,
nessas baboseiras!
J-A Miller: A realidade do
inconsciente ultrapassa a ficção. A senhora não tem idéia de tudo o que está
fundado, na vida humana, e especialmente no amor, em bagatelas, em cabeças de
alfinete, os “divinos detalhes”. É verdade que, sobretudo no macho, se
encontram tais causas do desejo, que são como fetiches cuja presença é
indispensável para desencadear o processo amoroso. As particularidades miúdas,
que relembram o pai, a mãe, o irmão, a irmã, tal personagem da infância, também
têm seu papel na escolha amorosa das mulheres. Porém, a forma feminina do amor
é, de preferência, mais erotômana que fetichista : elas querem ser amadas, e o
interesse, o amor que alguém lhes manifesta, ou que elas supõem no outro, é sempre
uma condição sine qua non para desencadear seu amor, ou, pelo menos, seu
consentimento. O fenômeno é a base da corte masculina.
P.: O senhor atribui algum papel às fantasias?
J-A Miller: Nas mulheres, quer sejam conscientes ou inconscientes, são mais
determinantes para a posição de gozo do que para a escolha amorosa. E é o
inverso para os homens. Por exemplo, acontece de uma mulher só conseguir obter
o gozo – o orgasmo, digamos – com a condição de se imaginar, durante o próprio
ato, sendo batida, violada, ou de ser uma outra mulher, ou ainda de estar
ausente, em outro lugar.
P.: E a fantasia
masculina?
J-A Miller: Está bem evidente no amor à primeira vista. O exemplo clássico,
comentado por Lacan, é, no romance de Goethe, a súbita paixão do jovem
Werther por Charlotte, no momento em que a vê pela primeira vez, alimentando ao
numeroso grupo de crianças que a rodeiam. Há aqui a qualidade maternal da
mulher que desencadeia o amor. Outro exemplo, retirado de minha prática, é
este: um patrão qüinquagenário recebe candidatas a um posto de secretária. Uma
jovem mulher de 20 anos se apresenta; ele lhe declara de imediato seu fogo.
Pergunta-se o que o tomou, entra em análise. Lá, descobre o desencadeante: ele
havia nela reencontrado os traços que evocavam o que ele próprio era quando
tinha 20 anos, quando se apresentou ao seu primeiro emprego. Ele estava, de
alguma forma, caído de amores por ele mesmo. Reencontra-se nesses dois
exemplos, as duas vertentes distinguidas por Freud: ama-se ou a pessoa que
protege, aqui a mãe, ou a uma imagem narcísica de si mesmo.
P.: Tem-se a impressão de
que somos marionetes!
J-A Miller: Não, entre tal homem e tal mulher, nada está escrito por
antecipação, não há bússola, nem proporção pré-estabelecida. Seu encontro não é
programado como o do espermatozóide e do óvulo; nada a ver também com os genes.
Os homens e as mulheres falam, vivem num mundo de discurso, e isso é
determinante. As modalidades do amor são ultra-sensíveis à cultura ambiente.
Cada civilização se distingue pela maneira como estrutura a relação entre os
sexos. Ora, acontece que no Ocidente, em nossas sociedades ao mesmo tempo
liberais, mercadológicas e jurídicas, o “múltiplo” está passando a destronar o
“um”. O modelo ideal do “grande amor de toda a vida” cede, pouco a pouco,
terreno para o speed dating, o speed loving e toda floração de cenários
amorosos alternativos, sucessivos, inclusive simultâneos.
P.: E o amor no tempo, em
sua duração? Na eternidade?
J-A Miller: Dizia Balzac: “Toda paixão que não se acredita eterna é
repugnante”. Entretanto, pode o laço se manter por toda a vida no registro
da paixão? Quanto mais um homem se consagra a uma só mulher, mais ela tende a
ter para ele uma significação maternal: quanto mais sublime e intocada, mais
amada. São os homossexuais casados que melhor desenvolvem esse culto à mulher:
Aragão canta seu amor por Elsa; assim que ela morre, bom dia rapazes! E quando
uma mulher se agarra a um só homem, ela o castra. Portanto, o caminho é
estreito. O melhor caminho do amor conjugal é a amizade, dizia, de fato,
Aristóteles.
P.: O problema é que os homens dizem não compreender o que querem as
mulheres; e as mulheres, o que os homens esperam delas...
J-A Miller: Sim. O que faz objeção à solução aristotélica é que o diálogo de
um sexo ao outro é impossível, suspirava Lacan. Os amantes estão, de fato,
condenados a aprender indefinidamente a língua do outro, tateando, buscando as
chaves, sempre revogáveis. O amor é um labirinto de mal entendidos onde a saída
não existe.
domingo, 25 de novembro de 2012
PRATOS QUEBRADOS
Vladimir
Safatle
I.
“Um homem não se recupera desses solavancos, ele se
torna uma pessoa diferente e eventualmente a nova pessoa encontra novas
preocupações.” Foi isso o que Scott Fitzgerald tinha a dizer depois de seu
colapso nervoso. Ele se via como um prato quebrado, “o tipo que nos perguntamos
se vale a pena conservar”. Prato que nunca mais será usado para visitas, mas
que servirá para guardar biscoitos tarde da noite.
De fato, há certos momentos no interior da vida de
um sujeito nos quais algo quebra, que não será mais colado. Olhando para trás,
é estranho ter a sensação de que andávamos em direção a esse ponto de ruptura,
como se fosse impossível evitá-lo caso quiséssemos continuar avançando. Como se
houvesse passagens que só poderiam ser vivenciadas como quebra. Talvez isso
ocorra porque somos feitos de forma tal que precisamos nos afastar de certas
experiências, de certos modos de gozo, para podermos funcionar. Dessa forma,
conseguiremos fabricar um prato com nossas vidas, um prato pequeno. A mulher
que precisa se afastar da maternidade, o homem que precisa se afastar de uma
paixão na qual se misturam coisas que deveriam estar separadas: todos esses são
casos de pratos fabricados para não passarem de certo tamanho.
No entanto, somos às vezes pegos por situações nas
quais acabamos por nos confrontar com aquilo que nos horroriza e fascina. Se
quisermos continuar, sabemos que, em dado momento, o prato se quebrará, que ele
nunca será recuperado, que talvez não funcionará “melhor”, até porque ele
viverá com a consciência clara de que há vários pontos da superfície nos quais
sua vulnerabilidade ficará visível. Como disse Fitzgerald, um homem não se
recupera desses solavancos. Algo desse sofrimento fica inscrito para sempre.
Mas ele também poderá descobrir que, mesmo depois
da quebra, ainda é capaz de se colar, de continuar funcionando, um pouco como
esses pratos que pintamos de outra forma para disfarçar as rachaduras. Se bem
elaborada, tal experiência poderá levar à diminuição do medo daquilo que, um
dia, fomos obrigados a excluir. Talvez aprendamos a compor com doses do
excluído, já que a necessidade da exclusão não era simplesmente arbitrária,
embora ela não precise ser radicalmente hipostasiada. Algo do excluído poderá
ser trabalhado e integrado; algo deverá ser irremediavelmente perdido.
Um dia, descobriremos que todos os pratos da sala
de jantar estão quebrados em algum ponto e que é com pratos quebrados que
sempre se ofereceram jantares. Os pratos que não passam por alguma quebra são
pequenos e, por isso, só servem para a sobremesa. No entanto, ninguém vai ao
banquete por causa da sobremesa.
II.
Há pessoas que parecem estar sempre à espera de uma
catástrofe. Quando dificuldades e necessidades de reacordos aparecem na vida,
elas só podem ver nisso o prenúncio da catástrofe anunciada. Por terem, no
fundo, vivido sob o signo da catástrofe iminente, elas não desenvolveram a
capacidade de suportar um tempo de espera, a confiança de que podemos sempre
encontrar modos de superar obstáculos. No entanto, boa parte de seus problemas
vem do fato de elas esquecerem que, nem sempre, bater de frente contra um muro
é a melhor maneira de atravessá-lo.
Um dia, Arnold Schoenberg disse a seu aluno John
Cage: “Você compõe como quem bate a cabeça contra um muro”. “Então, quero bater
minha cabeça até perfurá-lo”, respondeu Cage. A ideia pode ser boa, mas
realizá-la talvez não seja a melhor coisa a fazer. Não por acaso, Cage será
lembrado como alguém que tinha boas ideias, embora suas realizações nem sempre
fossem realmente boas. Um muro não é algo feito para ser perfurado com a
cabeça. No entanto, isso não significa que nossa cabeça seja fraca; significa
que devemos aprender a saltar.
Para as pessoas que parecem estar sempre à beira de
uma catástrofe, vale a pena lembrar que toda dificuldade é dificuldade de uma
situação. Ela é a ausência de boa resposta para os desafios de uma situação. No
entanto, somos sempre capazes de mudar de situação, de passar para o outro lado
do muro. Precisamos apenas de tempo para observá-lo com calma, medir sua
altura, deduzir sua espessura. Precisamos de perseverança para suportar a ideia
de que serão necessárias várias tentativas, que nos machucaremos no meio do
caminho. Mas a vida tem uma estranha benevolência para com aqueles que
continuam tentando. Ela sabe que a capacidade de suportar fracassos é condição
para mudarmos situações. Pois o fim não virá, nem a catástrofe. O que virá é
uma capacidade maior para construir escadas e varas. A vida é capaz de resolver
os problemas que ela coloca para si mesma.
domingo, 14 de outubro de 2012
“O DESAFIO DO ANALISTA É PERMANECER HUMANISTA”
Leopold Nosek
Quando o antigo já não existe mais e
o novo ainda não se estruturou é que se criam os monstros. Os sintomas desse
momento de transição – no qual se encontra a humanidade – estão na pauta dos
principais desafios dos analistas contemporâneos. No filme “A Pele em que
Habito”, de Pedro Almodóvar, podemos ver o monstro atual, na qual o indivíduo
pode trocar de sexo, de pele, fazer filhos de proveta, coisas antes
inimagináveis. Sem a tradição não se vive. No entanto, ficar paralisado na
tradição também não é viver.
O mundo da atualidade é muito
fragmentado, a análise ajuda a dar unidade para pensamentos e sentimentos. Para
isso, é preciso tem em mente que o paciente continua um ser humano. Só precisa
ser lembrado disso. É um trabalho de recuperação. Não vivemos de construções
velhas, portanto é impossível um analista estar ouvindo a mesma coisa. Nossos
sentimentos pedem sempre novos versos. Por exemplo, as canções de ninar. São
todas iguais. Falam de monstros, não de sossego. Porque a criança tem o medo e
o horror dentro dela. E quando encontra uma representação, se sente entendida.
Quando se adquirem palavras para o conflito e para a dor, aquilo se
circunscreve. Deixa de ser infinito e adquire um tamanho. A partir daí,
monta-se a equação e pode-se lidar com isso. Uma boa análise não resolve as
equações, mas ajuda a montá-las. E, às vezes, isso é o mais difícil. “A cuca
vem já, já, papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar”. É uma equação de
desamparo.
Será que o ser humano continuou
igual, enquanto o mundo sofreu um avanço tecnológico imenso? Em qualquer idade
nos encontramos em transição. Sempre foi assim. Mas, agora, a velocidade é
assombrosa. Outro dia, um adolescente me falou uma coisa interessante: que John
Lennon nunca tinha visto um computador.
Quando um paciente tem alta, quem
define isso: ele ou o analista? Não creio em alta. A alta não faz parte da
minha ideia analítica. A cura é uma ideia médica e se baseia em sintomas. O que
existe são momentos de desenvolvimento que promovem emancipação. Tem muita
gente que quer se aprofundar em si mesmo. Por outro lado, para quem faz
análise, esse tipo de exercício reflexivo é vital. Não há como evitar. Porém,
será que é possível que alguém consiga fazer tal reflexão sozinho? De fato não
criamos nada em isolamento. Prefiro dizer que há pessoas que fecham a porta
para esse tipo de prática. Muitas possuem uma dificuldade de olhar para sua
interioridade. São pessoas que estão sempre em ação, impedindo o contato com o
mundo onírico. Outros têm uma cegueira para o que é conflitivo, contraditório e
escuro. O que sabemos sobre a análise é que aquele que a faz fica um pouquinho
melhor na comparação com ele mesmo. E esse pouco melhor é inestimável. A
família e as pessoas ao lado notam. Claro que, como tudo, análise depende de
sorte. De achar a companhia certa para tanto. Nelson Rodrigues dizia que sem
sorte você não chupa nem picolé porque vai cair no seu sapato.
Vivemos transformações importantes.
Acostumamo-nos a lidar com um aparelho eletrônico e já temos que lidar com um
novo. Existe hoje um paradoxo. Vamos viver mais de oitenta anos, mas ficaremos
obsoletos profissionalmente, muitas vezes, com 40, 50 anos. Isso gera uma
grande insegurança. Há uma enorme concentração de recursos materiais e de
expediente para o trabalho para se produzir. Isto influencia nosso modo de
viver. Por exemplo, os bancos vão se preocupar com suas ações e não com as
hipotecas e o destino dos mutuários. Será que as grandes corporações
farmacêuticas são diferentes?
Como consequência, nos deparamos com a
falta tempo para o ser humano olhar para a própria humanidade. Não conseguimos
construir um acervo onírico, uma personalidade. Sonhar e adquirir um repertório
cultural, poético, requer tempo. É isso que necessitamos para dar conta da
vida. É um desafio dos analistas de hoje, muito diferente da época do Freud. O
sofrimento atual é de outra ordem. A do vazio. O indivíduo sofre, mas não
articula um discurso. Quem tem pânico, por exemplo, sequer sabe diferenciar se
o sofrimento é psíquico ou corporal. E crescem doenças como a anorexia,
obesidade e a bulimia, que há 40 anos eram uma raridade.
A anorexia é a ausência de desejo.
Não se sente fome, não há vida sexual. Porque o desejo é visto pelo anoréxico
como um perigo de destruição interna. Ele não tem acervo para dar conta. Isso é
o desafio para o analista. Como trata-se de um discurso que não se organiza, é
impossível realizar o que os analistas faziam antigamente – presente no
imaginário popular –, de atribuir significados inconscientes ao que o paciente
fala. É necessário a criação de novas narrativas, novos sonhos.
E como o analista deve reagir em uma
situação como essa? A ideia é justamente colocar o analista em questão. Estamos
diante de um mundo novo. Que implica em novo corpo, sexualidade, ética e
moralidade. Além de um sistema jurídico que terá que se adaptar a tudo isso. Em
um mundo onde as coisas estão cada vez mais técnicas, o desafio para o analista
é permanecer um humanista.
É claro que podemos comemorar as
novas medicações, são um progresso. Entretanto, há um exagero. As pessoas não
podem mais ficar tristes. Crises e os lutos são grandes oportunidades de
transformação, de inventividade, desenvolvimento. Se você não tem tempo do
luto, as pessoas tornam-se descartáveis. Como viver sem perdas? O importante é
dar um destino criativo para elas.
As pesquisas mostram que uma terapia,
de ordem verbal, aliada a medicação, funciona melhor do que só o remédio. Isso
é consenso em psiquiatria também. No entanto, existe uma predileção por sucesso
rápido. Costuma-se dizer que a psicanálise é demorada. O que ocorre é que
entramos em um processo de desenvolvimento. Se a análise for boa você sente os
benefícios desde o primeiro encontro.
Pode ser que as pessoas se perguntem
qual é a fórmula para se manter são. O objetivo não é, de fato, esse. Eu nem
pretendo isso. Não me apresento assim. Não tenho cara de são e não faço a menor
questão de ser. E não sei mais do que a pessoa que está lá comigo. Só tenho um
ouvido disciplinado para aquilo. Para ser analista, tem que ter problemas
suficientes para não conseguir ficar quieto.
Com o a falta de tempo para construir
um acervo que dê conta da sua humanidade, o indivíduo apela para as receitas
prontas. Porém, vivemos em tempos de transformação. Quando o velho não existe
mais e o novo ainda não se estruturou, criam-se os monstros. São momentos em
que ainda não há um novo sonho, uma referência poética. Em épocas como essa, em
que não existe tempo de esperar até que se organize um novo sonho, uma nova
referência poética e cultural, é que as pessoas se socorrem de coisas
estabelecidas.
Com o advento da internet, a esfera do
público e do privado mudou muito, com o Facebook e similares, por exemplo. As
pessoas acreditam que estão expondo a intimidade ali. Mas, na verdade, não.
Mudou o critério de intimidade. O que é íntimo, de verdade, as pessoas não
mostram porque quando é íntimo é conflituoso. O sexo pode ser íntimo para uma
pessoa e não para outra. E parte da graça do sexo é que é tremendamente
conflituoso e angustiante. Senão, seria como comer bife. O medo da perda, da invasão,
do excesso, estão sempre aí. O número de fantasias, medos e expectativas que
acompanham a sexualidade é enorme, e aí é que está a graça.
Desta forma, as pessoas estão atrás
de uma felicidade, porém, essa felicidade da qual se fala é uma bobagem. Uma
coisa é viver criativamente, viver bem. Viver feliz é um sonho infantil. A
ideia de não ter conflitos, problemas, é uma negação da realidade. Isso não é
viver feliz, é ter uma anestesia para uma parte da vida. Uma pessoa que
acredita nisso não vive as crises dos filhos, as questões amorosas, os lutos.
Pensa em soluções. Chamo essas pessoas de “solucionáticas”.
Para resumir, pode se dizer que o maior
desafio para o analista hoje é que cada vez mais o tratamento é bipessoal. Na
sala de análise tudo pode acontecer virtualmente. O analista tem que ser corajoso
e participativo. Ter audácia. Tem que ter o conhecimento. Esta é a sua ética.
Estamos todos em questão, o paciente, o analista e a análise. Cabe a
brincadeira “vamos olhar seus problemas de frente: pode se deitar”.
Texto adaptado
quarta-feira, 11 de julho de 2012
POR QUE A PSICANÁLISE, HOJE?
Renato Mezan
É difícil acreditar, mas a Psicanálise já
foi considerada perigosa, e em primeiro lugar por aqueles que a praticavam nos
seus inícios. Ao avistar a Estátua da Liberdade do navio que os levava aos
Estados Unidos, Freud teria sussurrado ao ouvido de Jung: “eles não sabem que
nós lhe trazemos a peste.” Esta história foi contada por Jacques Lacan, que a
teria ouvido do próprio Jung. Mesmo que a tomemos minuciosamente, já que não
existe qualquer outra menção a ela, a frase faz sentido no contexto da época: a
correspondência entre o fundador e seus discípulos, naqueles anos heróicos,
formiga de referências a “inocular” as idéias freudianas na Psiquiatria e no
público em geral, como se fossem um vírus capaz de abalar as colunas da
sociedade. São metáforas, por certo, mas que deixam entrever o potencial
subversivo daquelas doutrinas.
A direita conservadora também considerou
a Psicanálise perigosa, chegando os nazistas a bani-la sob o argumento de que
era mais uma das artimanhas judaicas para envenenar a civilização ariana. A
Igreja condenou-a por sua análise da religião; os comunistas, por trazer a
marca do individualismo burguês – razão pela qual foi proscrita da União
Soviética e dos seus satélites.
O que chocava tanto nas idéias de Freud?
Na época, a tese da sexualidade infantil, e de modo geral a importância
concedida aos fatores sexuais na determinação de comportamentos aparentemente
muito distantes de Eros. Hoje em dia, terminado o século XX – que já foi
chamado de “o século de Freud”, pela influência que suas idéias tiveram na
visão do homem ocidental acerca de si mesmo, na literatura, no cinema, nas
artes, nos costumes, na educação, na Psicologia – hoje em dia já não parece
chocar ninguém a existência do inconsciente ou do complexo de Édipo, assim como
o peso das fantasias eróticas na vida cotidiana de todos nós.
De “perigosa”, assim, a Psicanálise
dificilmente seria acusada hoje. É mais comum vê-la tachada de “irrelevante”,
“ultrapassada” ou “elitista”: as críticas provêm com freqüência da Psiquiatria
e da Psicologia dita cognitiva, e se referem à suposta ineficácia do tratamento
analítico para aliviar o sofrimento psíquico, se confrontado à terapia com
drogas ou a métodos mais diretivos.
Esta afirmação, trombeteada com monótona
freqüência, é quase sempre acompanhada por uma outra: “Freud está morto”. Mas
por que anunciar isso tantas vezes, e com tamanha veemência? É inevitável a
suspeita de que tais declarações sirvam de fachada a algo exatamente oposto – à
percepção, vaga e obscura, da Psicanálise como inquietante. E o que haveria de
inquietante na Psicanálise? Não pode ser sua suposta ineficácia, seu caráter
“pouco científico” ou a “arbitrariedade” do seu método de interpretação: nada
disso (que não passa de caricatura) suscitaria medo - quando muito, provocaria
desprezo. O que inquieta na disciplina freudiana é sua exigência ética: o
sujeito deve responsabilizar-se por sua vida, não no sentido de ser acusado
pelos sintomas que apresenta – o extremo deste absurdo é a idéia de que alguém
“estressado” pode provocar em si mesmo a eclosão de um câncer – mas no sentido de
assumir a parte que lhe cabe nos problemas e fracassos da sua existência, como
primeiro passo para os superar - na medida em que isso for possível.
Vivemos numa sociedade em que a
autonomia, valor máximo do Iluminismo que plasmou a modernidade, é entendida
como liberdade para consumir e para perseguir o prazer a qualquer custo. Pouco
importa o sentido das nossas experiências: é a sua intensidade que, nos é dito
incessantemente, deveríamos buscar, transformando cada ato e cada instante numa
fonte de excitação, fazendo de nossas vidas um constante borbulhar de sensações
sem continuidade. Viveríamos, nos dizem, numa cultura pós-moderna, na qual
impera a fragmentação e a condição humana se reduziu a migalhas promovidas à
categoria de espetáculo; só nos restaria acomodar-nos a isso, e renunciar
àquilo que a modernidade promoveu como ideal: a consciência de si e a
responsabilidade pelo que somos e fazemos.
A Psicanálise está longe de endeusar a
consciência por si: ela nos diz que somos movidos a paixões, que o ego não é
senhor em sua própria casa, que muito do que somos nos escapa, talvez o
essencial. É por isto que somos levados a atribuir a outrem a culpa por nossas
infelicidades – aos pais, ao cônjuge, ao consenso de Washington... A
experiência psicanalítica vai por outro caminho, que pode parecer paradoxal:
ela convida, por meio do dispositivo mais simples que se possa imaginar – falar
sobre si mesmo para outra pessoa – a um mergulho nos desvãos de nossa alma,
para tentar conhecer algo daquilo que nos determina à nossa revelia. O
extraordinário é que esta experiência pode levar a uma profunda transformação
da pessoa, não porque exclui, mas, ao contrário, porque inclui no raio da sua
consciência alguns destes fatores. Não é Freud quem “explica”, nem de resto o
psicanalista: é o próprio paciente quem se descobre, ouvindo-se falar,
deixando-se levar pelo seu discurso, elaborando seus insights e o que o
analista pode lhe comunicar por meio das interpretações.
Não é raro, nas entrevistas preliminares,
que o candidato a analisando expresse o temor de ficar “dependente” da análise,
como se pode ficar dependente do álcool ou da cocaína. Mas na verdade o que
assusta é outra coisa: a meu ver, a perspectiva de ter que abandonar os padrões
de dependência inculcados na infância, as servidões que resultam do recalque,
das defesas mutilantes e do medo de sentir angústia. A liberdade que nasce do autoconhecimento
– aparentemente desejada por quem procura uma análise, a crer no que é dito na
superfície do discurso – é que ameaça: pois implica em dizer a verdade a si
mesmo, em ver dissipadas muitas e queridas ilusões, que levamos tanto tempo
construindo, e das quais somos – aí sim, cabe o termo – dependentes.
A viagem psicanalítica ao fundo de si
mesmo não é fácil, nem indolor. Ela está na contramão do narcisismo infantil,
promovido sem pudor pela sociedade atual como solução para as dificuldades do
viver. O espelho que ela estende ao paciente, como o da madrasta de Branca de
Neve, lhe dirá que não é “a mais bela”, e esta descoberta provocará
desconforto, às vezes terror, certamente angústia. A Psicanálise pode ser tudo,
menos complacente com nosso profundo desejo de iludirmos a nós mesmos – e a
chamada “resistência” é precisamente a prova de quão arraigada é esta
tendência. Ela propõe a conquista da autonomia possível – e nisto é herdeira do
Iluminismo; autonomia, contudo, fundada na admissão daquilo para cada qual é
mais íntimo e secreto – e nisto é herdeira do Romantismo.
Como nos admirarmos de que tal proposta
seja tão pouco compatível com a superficialidade, a pressa e o pouco caso com o
sentido que perpassa nossa vida atual? Disso não se conclui que a Psicanálise
seja irrelevante; ao contrário, é seu gume crítico (tanto em relação à cultura
de massas quanto à “massificação” da experiência de si) que nela perturba. Não
queremos ser incomodados, mas o fato é que esta cegueira nos faz sofrer. A
Psicanálise apela a uma razão ampliada, que inclua em si o que a sociedade
contemporânea mais teme: o conflito, e modos de lidar com ele que não pretendem
expulsá-lo dali onde ele se enraíza – em nós mesmos.
Renato Mezan é psicanalista,
membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor
titular da PUC/SP e autor de vários livros.
sábado, 16 de junho de 2012
A CONSTRUÇÃO DAS RELAÇÕES NO MUNDO CONTEMPORÂNEO!
O mundo não é
humano só por ser feito de seres humanos, nem se torna assim somente porque a
voz humana nele ressoa, mas apenas quando se transforma em objeto do
discurso...
Nós humanizamos o que se passa no mundo e em nós mesmos apenas
falando sobre isso, e no curso desse ato aprendemos a ser humanos.
Esse
humanitarismo a que se chega no discurso da amizade era chamado pelos gregos de
filantropia, o "amor do homem", já que se manifesta na presteza em
compartilhar o mundo com outros homens.
– Hannah Arendt
Pensar nos tempos em que vivemos é pensar na
contemporaneidade. O termo contemporaneidade
refere-se aos tempos recentes, dos últimos vinte ou trinta anos, e, pode-se
considerar a marca desta época o fenômeno da globalização. Definida basicamente
como estabelecimento de uma rede de informações à distância e de fluxo
contínuo, tem como suporte a tecnologia avançada da informação, a informática,
que organiza a vida econômica, política e social, segundo uma ordem mundial. As
comunicações ultrapassam quaisquer limites ou barreiras, estabelecendo um fluxo
rápido e em movimento contínuo de dados – sons, imagens e textos cruzando o
planeta, sem controle e sem limites. O implacável avanço dos meios de
comunicação estabelece sua presença e ação em todo planeta, resultando em
profundas transformações irreversíveis para a condição humana, quanto ao
conteúdo, qualidade e quantidade de imagens a que está submetido o homem
contemporâneo. E, como consequência, ampliando o imaginário de seres humanos.
A internet assume um poder de ser uma verdadeira
extensão do viver cotidiano atual. Por outro lado, possibilita a sedução da
liberdade, de um espaço ilimitado de comunicação e de expressão do indivíduo.
Com toda essa influência contemporânea, a subjetividade fica, por assim dizer,
afetada, gerando novas formas de existência e socializações, com isso, os
indivíduos passam a optar pelas redes sociais ou mesmo pelo não vínculo.
Com todo esse movimento contemporâneo,
deparamo-nos com novos fenômenos sócio-culturais que afetam,
significativamente, a construção subjetiva. Tais fenômenos são:
- Consumismo;
- Modelos tecnológicos;
- Narcisismo moderno.
O CONSUMISMO
Tal fenômeno surge a partir do capitalismo e
segue às regras de consumo impostas pela mídia, cada vez mais influente na vida
de cada indivíduo. O consumismo passa ser um ritual seguido pelos seus
“adeptos” em busca de realização pessoal através do consumo exacerbado de bens,
produtos e serviços. Uma tentativa efêmera e frustrante de buscar segurança e
conforto e, ao mesmo tempo, tentar lidar com algum conflito interno não
resolvido.
O consumismo não propicia a elaboração do
simbólico, o sujeito não consegue sanar seus conflitos psíquicos por meio do
consumo exacerbado, pois aquilo que se compra ou consome perece, resultando,
desta forma, em repetição, um ciclo vicioso ou uma bola de neve.
Segundo Zygmun Bauman em seu livro “Amor
líquido”, vivemos numa sociedade objeto, na qual, cada vez mais as pessoas só
reconhecem umas as outras socialmente, ou seja, pelos seus bens, por aquilo que
elas possuem ou compram. Com isso, as relações ficam igualmente afetadas,
seguindo a mesma linha de troca, isto é, quando não se gosta mais ou quando a
relação não serve mais, deleta-se, troca-se, joga-se fora…
O MODELO
TECNOLÓGICO
Na
atualidade, a maioria das pessoas mantém suas relações tendo como pano de fundo
as funções técnicas, desta forma, tudo passa a ser mensurado e com ênfase nos
meios de comunicação, cada vez mais fortes. Com isso, as famílias sofrem
alterações na sua formação, tornando-se, cada vez mais, focadas na tecnologia.
O saber da prática passada de geração para geração e dos vínculos familiares se
torna cada vez mais redutível. Com isso, o ritmo que nos encontramos hoje em
dia exige que aceleremos cada vez mais para não ser ultrapassado e devorado
pela informação.
O
investimento cada vez maior no mundo virtual gera um caráter leviano em que se
pode pensar, repensar e até mesmo mudar de postura posteriormente. O
relacionar-se pela linha do virtual cria possibilidade de ser criar e “deletar”
uma relação muito facilmente. O mundo virtual é uma forma muito nova de se
relacionar, facilitando o acesso ao outro que, de uma forma física, não seria
possível.
Nesse
mundo virtual, vivemos a sociedade do espetáculo, na qual se ostenta, cada vez
mais, por meio das redes sociais, a ideia de felicidades, quanto mais amigos
virtuais mais popular, quanto mais postagens de fotos de viagens mais se
constrói a ilusão ou o mito da onipotência.
NARCISISMO MODERNO
Na realidade cada vez mais líquida da
modernidade, na qual nada se mantém, tudo está muito fluido e sem constância,
os indivíduos ficam cada vez mais frágeis em detrimento das consequências que
lhes recaem de suas ações na busca pela sobrevivência.
Na tentativa de manter uma indiferença por medo
de se apegar e se relacionar, os indivíduos produzem um mal estar cultural, expondo
a fragilidade em cada indivíduo, que não encontra segurança nas relações.
Desta forma, o indivíduo cada vez mais aberto e
cambiante tem a necessidade de fazer investidas narcísicas, a fim de dar conta
dessas constantes mudanças do mundo, que perdeu o poder organizador que o
coletivo tinha sobre o social, vivenciando, assim, sua existência de maneira
mais solitária e fria.
Assim, podemos refletir sobre nosso líquido
mundo moderno e perguntar-nos: será que não estamos preocupados com uma coisa e
falando de outra? Será que nosso desejo, paixão, objetivo ou sonho é de “relacionar-se”,
mas na verdade não estão preocupados em evitar que nossas relações acabem
congeladas e coaguladas? Estamos mesmo procurando relacionamentos duradouros ou
nosso maior desejo é que eles sejam leves e frouxos, de tal modo que possam ser
postos de lado a qualquer momento? Afinal, que tipo de conselho queremos de
verdade: como estabelecer um relacionamento ou como rompê-lo sem dor e com a
consciência limpa? (Bauman, 2004).
Será que vamos conseguir, um dia, voltar a olhar o outro nas suas
qualidades e diferenças, indo além das nossas projeções e expectativas?
Precisas ter! Precisas comprar!
Precisas experimentar! Precisas possuir! Precisas de tudo a qualquer custo, de
qualquer modo! Ora, promessas vãs, momentâneas alegrias, sentidos descartáveis;
é o reino das aparências, o primado da reclusão em uma insaciável procura por
uma resposta que está além do consumismo tresloucado. Doce mel, terrível
veneno... (Cortella, 2009, p. 109).
Referêcias
CORTELLA, Mario Sergio. Não nascemos prontos! Provocações
filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2009.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos
laços humanos. Rio de Janeiro: JZE, 2004.
Texto: Renne S. Nunes
(Psicólogo - Mestrando em Psicologia Clínica pela USP)
Fonte das imagens: GOOGLE
domingo, 8 de abril de 2012
NOJINHO DE MIM
Procurado pela Revista TPM, o
psicanalista Christian Dunker resolveu mergulhar no nojo feminino para entender
de onde vem esse mal contemporâneo
A mulher perfeita não tem cheiro, nem pelos, hálito, chulé ou gosto. Nojo delas mesmas?
Por Christian Ingo Lenz Dunker
Imagem: Revista TPM |
Muito genericamente, o
corpo nos diz quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Ele se torna tão
importante porque é também algo que imaginamos controlar, moldar e produzir
como imagem de nós mesmos, como queremos nos apresentar para o outro. E o
cheiro é um traço essencial de que há algo que não controlamos em nosso próprio
corpo. Podemos usar xampus, pós, cremes e perfumes, mas essas táticas se
degradam no tempo, são corrompidas por nosso suor, pelos odores do ambientes,
pela presença do cheiro do outro. O que varremos para baixo do tapete permanece
lá, escondido, invisível, mas aquilo que cheira mal, nos diz que mesmo estando
escondido se revela na forma de uma sensação genérica e mal definida. Nosso
cheiro diz, por isso mesmo, quem somos, para além do que queremos parecer. Isso
não quer dizer que temos uma essência odorífica, mas que justamente por
escapar, por ser mal definível, por ser um estranho dentro de nós mesmos,
atribuímos ao cheiro esse lugar fascinante e perigoso. É por isso que o filme O Cheiro do Ralo
(Heitor Dhalia, 2006) nos parece tão obsceno quanto atual.
Se na nossa cultura há uma
promessa de que, controlando nossas imagens, controlamos como o outro nos
percebe, aquilo que denuncia que as imagens enganam, ou seja, o cheiro,
torna-se um problema crucial. “Por fora bela viola, por dentro pão bolorento”.
A ideia do sabonete íntimo
é equivalente à tentativa de disciplinar as “partes pudentas” da mulher, de
forma que elas não se mostrem indóceis, incontroláveis ou denunciantes. É
interessante ver como, em geral, o sabonete íntimo cruza duas ideias ligadas ao
poder moral do cheiro.
Primeiro temos a ideia de
que as partes íntimas devem ser higienizadas, limpas. Esta é a ideia mais
antiga, que representa a sexualidade em analogia com o sujo, o impuro e o
doentio. A figura típica aqui é a da dona de casa, frustrada sexualmente, que
consagra sua existência à mania de limpeza, ordem e higienização. Como as mãos
de Lady MacBeth, que jamais são limpas do sangue do assassinato cometido, a
sexualidade expulsa pela porta da frente, retorna pela porta de trás, como um
cheiro, uma mancha, uma coisa mal definida. Hitchcock conseguiu por em imagens
esta força sem forma, excessiva e invasiva representada pelo cheiro em seu
filme Os
Pássaros (1963).
Mas a nova retórica dos
sabonetes íntimos recobre esta primeira figura com uma segunda ideia. Usar o
sabonete íntimo não é só uma maneira de controlar o cheiro aversivo, mas uma
forma de lembrarmo-nos que temos uma ... E que ela merece atenção, cuidado e
observação. Menos que uma vagina inodora, queremos aqui um cheiro específico,
que podemos escolher, controlar, variar. A imagem trazida aqui é a da mulher
que, mesmo menstruada, veste calça branca, faz ginástica e está disposta a
qualquer coisa.
CHEIRO SECRETO
O nojo é um dos chamados
sentimentos sociais, ou seja, depende da forma como aprendemos a dissociar em
nosso corpo o que é permitido do que é proibido, o prazer desejável do prazer
interditado. Freud dedicava grande importância ao nojo como afeto social muito
primitivo, tanto na história da criança, quanto na história de nossa cultura.
De fato relação com
secreções e excreções são as experiências originárias do nojo, e apontam para o
que deve ser excluído e escondido em nossa cultura e em nós mesmos. Por
exemplo, os alemães, povo tido como meticuloso e metódico, utilizam privadas
sanitárias nas quais os dejetos podem cair (em um recuo específico de
porcelana), aí serem inspecionados e, em seguida, levados pela água, segundo a
precisa deliberação do usuário. Já os franceses, povo mais político e dado à
controvérsia, dispensam este lugar reservado para coletar os dejetos, mas
permitem que a coisa flutue antes de ser abruptamente subtraída. Os japoneses,
culturalmente associados com a tecnologia, inventaram as privadas com duchas
automáticas, de tal forma que não é necessário ver e o mínimo de odor é
experimentado. Nós brasileiros, adoramos a turbulência excessiva e os
rodamoinhos pelo qual muita água deve ser escoada para limpar bem nossos
rastros.
Portanto, o nojo é sempre
primariamente de si, depois ele é depositado no outro. Freud fez uma afirmação
clínica muito forte sobre o nojo: “Toda vez que, diante de uma experiência
potencialmente sexual, encontramos no paciente o sentimento de nojo, não
hesitamos em diagnosticar a histeria”. Ou seja, o nojo como afeto deslocado, o
nojo excessivo, o nojo fora de lugar, aponta para um aspecto da sexualidade do
qual não queremos saber em nós mesmos.
Uma mulher percebida como
suja ou insuficientemente limpa é associada com alguém que coloca seu desejo
ativamente, que tem vontade de se sexualizar ou, inversamente, alguém que não
se importa com a opinião (e logo com o desejo) dos outros. Portanto, a
higienização feminina liga-se tanto ao processo de cuidar, de observar e de
tratar do próprio corpo (como satisfação intrínseca) quanto ao processo pelo
qual a mulher se apresenta como capaz de controlar seu corpo (logo sua
sexualidade), como um corpo que não foi tocado por outro (para a fantasia masculina
seria um corpo sem rastros) e como moralmente desejável.
Mas vale lembrar que um ser
humano essencialmente cheira. O cheiro é o rastro de suas experiências com os
outros e consigo mesmo. A obsessão de não ter cheiro é a expressão da negação
de nossa humanidade. É isso que nossa época parece pedir: “Seja intenso, viva a
vida e aproveite, mas ao mesmo tempo negue a sua própria humanidade e leve uma
vida líqüida: insípida, incolor e inodora.” Tome café, mas sem cafeína, coma
chocolate, mas sem açúcar, viva paixões, mas sem se perder, ou seja, viva a
vida, mas não seja humano.
Texto: Christian Dunker
Revista TPM
Assinar:
Postagens (Atom)