domingo, 25 de novembro de 2012

PRATOS QUEBRADOS



Vladimir Safatle

 I.
“Um homem não se recupera desses solavancos, ele se torna uma pessoa diferente e eventualmente a nova pessoa encontra novas preocupações.” Foi isso o que Scott Fitzgerald tinha a dizer depois de seu colapso nervoso. Ele se via como um prato quebrado, “o tipo que nos perguntamos se vale a pena conservar”. Prato que nunca mais será usado para visitas, mas que servirá para guardar biscoitos tarde da noite.
De fato, há certos momentos no interior da vida de um sujeito nos quais algo quebra, que não será mais colado. Olhando para trás, é estranho ter a sensação de que andávamos em direção a esse ponto de ruptura, como se fosse impossível evitá-lo caso quiséssemos continuar avançando. Como se houvesse passagens que só poderiam ser vivenciadas como quebra. Talvez isso ocorra porque somos feitos de forma tal que precisamos nos afastar de certas experiências, de certos modos de gozo, para podermos funcionar. Dessa forma, conseguiremos fabricar um prato com nossas vidas, um prato pequeno. A mulher que precisa se afastar da maternidade, o homem que precisa se afastar de uma paixão na qual se misturam coisas que deveriam estar separadas: todos esses são casos de pratos fabricados para não passarem de certo tamanho.
No entanto, somos às vezes pegos por situações nas quais acabamos por nos confrontar com aquilo que nos horroriza e fascina. Se quisermos continuar, sabemos que, em dado momento, o prato se quebrará, que ele nunca será recuperado, que talvez não funcionará “melhor”, até porque ele viverá com a consciência clara de que há vários pontos da superfície nos quais sua vulnerabilidade ficará visível. Como disse Fitzgerald, um homem não se recupera desses solavancos. Algo desse sofrimento fica inscrito para sempre.
Mas ele também poderá descobrir que, mesmo depois da quebra, ainda é capaz de se colar, de continuar funcionando, um pouco como esses pratos que pintamos de outra forma para disfarçar as rachaduras. Se bem elaborada, tal experiência poderá levar à diminuição do medo daquilo que, um dia, fomos obrigados a excluir. Talvez aprendamos a compor com doses do excluído, já que a necessidade da exclusão não era simplesmente arbitrária, embora ela não precise ser radicalmente hipostasiada. Algo do excluído poderá ser trabalhado e integrado; algo deverá ser irremediavelmente perdido.
Um dia, descobriremos que todos os pratos da sala de jantar estão quebrados em algum ponto e que é com pratos quebrados que sempre se ofereceram jantares. Os pratos que não passam por alguma quebra são pequenos e, por isso, só servem para a sobremesa. No entanto, ninguém vai ao banquete por causa da sobremesa.

II.
Há pessoas que parecem estar sempre à espera de uma catástrofe. Quando dificuldades e necessidades de reacordos aparecem na vida, elas só podem ver nisso o prenúncio da catástrofe anunciada. Por terem, no fundo, vivido sob o signo da catástrofe iminente, elas não desenvolveram a capacidade de suportar um tempo de espera, a confiança de que podemos sempre encontrar modos de superar obstáculos. No entanto, boa parte de seus problemas vem do fato de elas esquecerem que, nem sempre, bater de frente contra um muro é a melhor maneira de atravessá-lo.

Um dia, Arnold Schoenberg disse a seu aluno John Cage: “Você compõe como quem bate a cabeça contra um muro”. “Então, quero bater minha cabeça até perfurá-lo”, respondeu Cage. A ideia pode ser boa, mas realizá-la talvez não seja a melhor coisa a fazer. Não por acaso, Cage será lembrado como alguém que tinha boas ideias, embora suas realizações nem sempre fossem realmente boas. Um muro não é algo feito para ser perfurado com a cabeça. No entanto, isso não significa que nossa cabeça seja fraca; significa que devemos aprender a saltar.


Para as pessoas que parecem estar sempre à beira de uma catástrofe, vale a pena lembrar que toda dificuldade é dificuldade de uma situação. Ela é a ausência de boa resposta para os desafios de uma situação. No entanto, somos sempre capazes de mudar de situação, de passar para o outro lado do muro. Precisamos apenas de tempo para observá-lo com calma, medir sua altura, deduzir sua espessura. Precisamos de perseverança para suportar a ideia de que serão necessárias várias tentativas, que nos machucaremos no meio do caminho. Mas a vida tem uma estranha benevolência para com aqueles que continuam tentando. Ela sabe que a capacidade de suportar fracassos é condição para mudarmos situações. Pois o fim não virá, nem a catástrofe. O que virá é uma capacidade maior para construir escadas e varas. A vida é capaz de resolver os problemas que ela coloca para si mesma.


Fonte: Revista CULT