Renato Mezan
É difícil acreditar, mas a Psicanálise já
foi considerada perigosa, e em primeiro lugar por aqueles que a praticavam nos
seus inícios. Ao avistar a Estátua da Liberdade do navio que os levava aos
Estados Unidos, Freud teria sussurrado ao ouvido de Jung: “eles não sabem que
nós lhe trazemos a peste.” Esta história foi contada por Jacques Lacan, que a
teria ouvido do próprio Jung. Mesmo que a tomemos minuciosamente, já que não
existe qualquer outra menção a ela, a frase faz sentido no contexto da época: a
correspondência entre o fundador e seus discípulos, naqueles anos heróicos,
formiga de referências a “inocular” as idéias freudianas na Psiquiatria e no
público em geral, como se fossem um vírus capaz de abalar as colunas da
sociedade. São metáforas, por certo, mas que deixam entrever o potencial
subversivo daquelas doutrinas.
A direita conservadora também considerou
a Psicanálise perigosa, chegando os nazistas a bani-la sob o argumento de que
era mais uma das artimanhas judaicas para envenenar a civilização ariana. A
Igreja condenou-a por sua análise da religião; os comunistas, por trazer a
marca do individualismo burguês – razão pela qual foi proscrita da União
Soviética e dos seus satélites.
O que chocava tanto nas idéias de Freud?
Na época, a tese da sexualidade infantil, e de modo geral a importância
concedida aos fatores sexuais na determinação de comportamentos aparentemente
muito distantes de Eros. Hoje em dia, terminado o século XX – que já foi
chamado de “o século de Freud”, pela influência que suas idéias tiveram na
visão do homem ocidental acerca de si mesmo, na literatura, no cinema, nas
artes, nos costumes, na educação, na Psicologia – hoje em dia já não parece
chocar ninguém a existência do inconsciente ou do complexo de Édipo, assim como
o peso das fantasias eróticas na vida cotidiana de todos nós.
De “perigosa”, assim, a Psicanálise
dificilmente seria acusada hoje. É mais comum vê-la tachada de “irrelevante”,
“ultrapassada” ou “elitista”: as críticas provêm com freqüência da Psiquiatria
e da Psicologia dita cognitiva, e se referem à suposta ineficácia do tratamento
analítico para aliviar o sofrimento psíquico, se confrontado à terapia com
drogas ou a métodos mais diretivos.
Esta afirmação, trombeteada com monótona
freqüência, é quase sempre acompanhada por uma outra: “Freud está morto”. Mas
por que anunciar isso tantas vezes, e com tamanha veemência? É inevitável a
suspeita de que tais declarações sirvam de fachada a algo exatamente oposto – à
percepção, vaga e obscura, da Psicanálise como inquietante. E o que haveria de
inquietante na Psicanálise? Não pode ser sua suposta ineficácia, seu caráter
“pouco científico” ou a “arbitrariedade” do seu método de interpretação: nada
disso (que não passa de caricatura) suscitaria medo - quando muito, provocaria
desprezo. O que inquieta na disciplina freudiana é sua exigência ética: o
sujeito deve responsabilizar-se por sua vida, não no sentido de ser acusado
pelos sintomas que apresenta – o extremo deste absurdo é a idéia de que alguém
“estressado” pode provocar em si mesmo a eclosão de um câncer – mas no sentido de
assumir a parte que lhe cabe nos problemas e fracassos da sua existência, como
primeiro passo para os superar - na medida em que isso for possível.
Vivemos numa sociedade em que a
autonomia, valor máximo do Iluminismo que plasmou a modernidade, é entendida
como liberdade para consumir e para perseguir o prazer a qualquer custo. Pouco
importa o sentido das nossas experiências: é a sua intensidade que, nos é dito
incessantemente, deveríamos buscar, transformando cada ato e cada instante numa
fonte de excitação, fazendo de nossas vidas um constante borbulhar de sensações
sem continuidade. Viveríamos, nos dizem, numa cultura pós-moderna, na qual
impera a fragmentação e a condição humana se reduziu a migalhas promovidas à
categoria de espetáculo; só nos restaria acomodar-nos a isso, e renunciar
àquilo que a modernidade promoveu como ideal: a consciência de si e a
responsabilidade pelo que somos e fazemos.
A Psicanálise está longe de endeusar a
consciência por si: ela nos diz que somos movidos a paixões, que o ego não é
senhor em sua própria casa, que muito do que somos nos escapa, talvez o
essencial. É por isto que somos levados a atribuir a outrem a culpa por nossas
infelicidades – aos pais, ao cônjuge, ao consenso de Washington... A
experiência psicanalítica vai por outro caminho, que pode parecer paradoxal:
ela convida, por meio do dispositivo mais simples que se possa imaginar – falar
sobre si mesmo para outra pessoa – a um mergulho nos desvãos de nossa alma,
para tentar conhecer algo daquilo que nos determina à nossa revelia. O
extraordinário é que esta experiência pode levar a uma profunda transformação
da pessoa, não porque exclui, mas, ao contrário, porque inclui no raio da sua
consciência alguns destes fatores. Não é Freud quem “explica”, nem de resto o
psicanalista: é o próprio paciente quem se descobre, ouvindo-se falar,
deixando-se levar pelo seu discurso, elaborando seus insights e o que o
analista pode lhe comunicar por meio das interpretações.
Não é raro, nas entrevistas preliminares,
que o candidato a analisando expresse o temor de ficar “dependente” da análise,
como se pode ficar dependente do álcool ou da cocaína. Mas na verdade o que
assusta é outra coisa: a meu ver, a perspectiva de ter que abandonar os padrões
de dependência inculcados na infância, as servidões que resultam do recalque,
das defesas mutilantes e do medo de sentir angústia. A liberdade que nasce do autoconhecimento
– aparentemente desejada por quem procura uma análise, a crer no que é dito na
superfície do discurso – é que ameaça: pois implica em dizer a verdade a si
mesmo, em ver dissipadas muitas e queridas ilusões, que levamos tanto tempo
construindo, e das quais somos – aí sim, cabe o termo – dependentes.
A viagem psicanalítica ao fundo de si
mesmo não é fácil, nem indolor. Ela está na contramão do narcisismo infantil,
promovido sem pudor pela sociedade atual como solução para as dificuldades do
viver. O espelho que ela estende ao paciente, como o da madrasta de Branca de
Neve, lhe dirá que não é “a mais bela”, e esta descoberta provocará
desconforto, às vezes terror, certamente angústia. A Psicanálise pode ser tudo,
menos complacente com nosso profundo desejo de iludirmos a nós mesmos – e a
chamada “resistência” é precisamente a prova de quão arraigada é esta
tendência. Ela propõe a conquista da autonomia possível – e nisto é herdeira do
Iluminismo; autonomia, contudo, fundada na admissão daquilo para cada qual é
mais íntimo e secreto – e nisto é herdeira do Romantismo.
Como nos admirarmos de que tal proposta
seja tão pouco compatível com a superficialidade, a pressa e o pouco caso com o
sentido que perpassa nossa vida atual? Disso não se conclui que a Psicanálise
seja irrelevante; ao contrário, é seu gume crítico (tanto em relação à cultura
de massas quanto à “massificação” da experiência de si) que nela perturba. Não
queremos ser incomodados, mas o fato é que esta cegueira nos faz sofrer. A
Psicanálise apela a uma razão ampliada, que inclua em si o que a sociedade
contemporânea mais teme: o conflito, e modos de lidar com ele que não pretendem
expulsá-lo dali onde ele se enraíza – em nós mesmos.
Renato Mezan é psicanalista,
membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor
titular da PUC/SP e autor de vários livros.