quarta-feira, 11 de julho de 2012

POR QUE A PSICANÁLISE, HOJE?



Renato Mezan


É difícil acreditar, mas a Psicanálise já foi considerada perigosa, e em primeiro lugar por aqueles que a praticavam nos seus inícios. Ao avistar a Estátua da Liberdade do navio que os levava aos Estados Unidos, Freud teria sussurrado ao ouvido de Jung: “eles não sabem que nós lhe trazemos a peste.” Esta história foi contada por Jacques Lacan, que a teria ouvido do próprio Jung. Mesmo que a tomemos minuciosamente, já que não existe qualquer outra menção a ela, a frase faz sentido no contexto da época: a correspondência entre o fundador e seus discípulos, naqueles anos heróicos, formiga de referências a “inocular” as idéias freudianas na Psiquiatria e no público em geral, como se fossem um vírus capaz de abalar as colunas da sociedade. São metáforas, por certo, mas que deixam entrever o potencial subversivo daquelas doutrinas.


A direita conservadora também considerou a Psicanálise perigosa, chegando os nazistas a bani-la sob o argumento de que era mais uma das artimanhas judaicas para envenenar a civilização ariana. A Igreja condenou-a por sua análise da religião; os comunistas, por trazer a marca do individualismo burguês – razão pela qual foi proscrita da União Soviética e dos seus satélites.
O que chocava tanto nas idéias de Freud? Na época, a tese da sexualidade infantil, e de modo geral a importância concedida aos fatores sexuais na determinação de comportamentos aparentemente muito distantes de Eros. Hoje em dia, terminado o século XX – que já foi chamado de “o século de Freud”, pela influência que suas idéias tiveram na visão do homem ocidental acerca de si mesmo, na literatura, no cinema, nas artes, nos costumes, na educação, na Psicologia – hoje em dia já não parece chocar ninguém a existência do inconsciente ou do complexo de Édipo, assim como o peso das fantasias eróticas na vida cotidiana de todos nós.


De “perigosa”, assim, a Psicanálise dificilmente seria acusada hoje. É mais comum vê-la tachada de “irrelevante”, “ultrapassada” ou “elitista”: as críticas provêm com freqüência da Psiquiatria e da Psicologia dita cognitiva, e se referem à suposta ineficácia do tratamento analítico para aliviar o sofrimento psíquico, se confrontado à terapia com drogas ou a métodos mais diretivos.
Esta afirmação, trombeteada com monótona freqüência, é quase sempre acompanhada por uma outra: “Freud está morto”. Mas por que anunciar isso tantas vezes, e com tamanha veemência? É inevitável a suspeita de que tais declarações sirvam de fachada a algo exatamente oposto – à percepção, vaga e obscura, da Psicanálise como inquietante. E o que haveria de inquietante na Psicanálise? Não pode ser sua suposta ineficácia, seu caráter “pouco científico” ou a “arbitrariedade” do seu método de interpretação: nada disso (que não passa de caricatura) suscitaria medo - quando muito, provocaria desprezo. O que inquieta na disciplina freudiana é sua exigência ética: o sujeito deve responsabilizar-se por sua vida, não no sentido de ser acusado pelos sintomas que apresenta – o extremo deste absurdo é a idéia de que alguém “estressado” pode provocar em si mesmo a eclosão de um câncer – mas no sentido de assumir a parte que lhe cabe nos problemas e fracassos da sua existência, como primeiro passo para os superar - na medida em que isso for possível.


Vivemos numa sociedade em que a autonomia, valor máximo do Iluminismo que plasmou a modernidade, é entendida como liberdade para consumir e para perseguir o prazer a qualquer custo. Pouco importa o sentido das nossas experiências: é a sua intensidade que, nos é dito incessantemente, deveríamos buscar, transformando cada ato e cada instante numa fonte de excitação, fazendo de nossas vidas um constante borbulhar de sensações sem continuidade. Viveríamos, nos dizem, numa cultura pós-moderna, na qual impera a fragmentação e a condição humana se reduziu a migalhas promovidas à categoria de espetáculo; só nos restaria acomodar-nos a isso, e renunciar àquilo que a modernidade promoveu como ideal: a consciência de si e a responsabilidade pelo que somos e fazemos.
A Psicanálise está longe de endeusar a consciência por si: ela nos diz que somos movidos a paixões, que o ego não é senhor em sua própria casa, que muito do que somos nos escapa, talvez o essencial. É por isto que somos levados a atribuir a outrem a culpa por nossas infelicidades – aos pais, ao cônjuge, ao consenso de Washington... A experiência psicanalítica vai por outro caminho, que pode parecer paradoxal: ela convida, por meio do dispositivo mais simples que se possa imaginar – falar sobre si mesmo para outra pessoa – a um mergulho nos desvãos de nossa alma, para tentar conhecer algo daquilo que nos determina à nossa revelia. O extraordinário é que esta experiência pode levar a uma profunda transformação da pessoa, não porque exclui, mas, ao contrário, porque inclui no raio da sua consciência alguns destes fatores. Não é Freud quem “explica”, nem de resto o psicanalista: é o próprio paciente quem se descobre, ouvindo-se falar, deixando-se levar pelo seu discurso, elaborando seus insights e o que o analista pode lhe comunicar por meio das interpretações.
Não é raro, nas entrevistas preliminares, que o candidato a analisando expresse o temor de ficar “dependente” da análise, como se pode ficar dependente do álcool ou da cocaína. Mas na verdade o que assusta é outra coisa: a meu ver, a perspectiva de ter que abandonar os padrões de dependência inculcados na infância, as servidões que resultam do recalque, das defesas mutilantes e do medo de sentir angústia. A liberdade que nasce do autoconhecimento – aparentemente desejada por quem procura uma análise, a crer no que é dito na superfície do discurso – é que ameaça: pois implica em dizer a verdade a si mesmo, em ver dissipadas muitas e queridas ilusões, que levamos tanto tempo construindo, e das quais somos – aí sim, cabe o termo – dependentes.


A viagem psicanalítica ao fundo de si mesmo não é fácil, nem indolor. Ela está na contramão do narcisismo infantil, promovido sem pudor pela sociedade atual como solução para as dificuldades do viver. O espelho que ela estende ao paciente, como o da madrasta de Branca de Neve, lhe dirá que não é “a mais bela”, e esta descoberta provocará desconforto, às vezes terror, certamente angústia. A Psicanálise pode ser tudo, menos complacente com nosso profundo desejo de iludirmos a nós mesmos – e a chamada “resistência” é precisamente a prova de quão arraigada é esta tendência. Ela propõe a conquista da autonomia possível – e nisto é herdeira do Iluminismo; autonomia, contudo, fundada na admissão daquilo para cada qual é mais íntimo e secreto – e nisto é herdeira do Romantismo.
Como nos admirarmos de que tal proposta seja tão pouco compatível com a superficialidade, a pressa e o pouco caso com o sentido que perpassa nossa vida atual? Disso não se conclui que a Psicanálise seja irrelevante; ao contrário, é seu gume crítico (tanto em relação à cultura de massas quanto à “massificação” da experiência de si) que nela perturba. Não queremos ser incomodados, mas o fato é que esta cegueira nos faz sofrer. A Psicanálise apela a uma razão ampliada, que inclua em si o que a sociedade contemporânea mais teme: o conflito, e modos de lidar com ele que não pretendem expulsá-lo dali onde ele se enraíza – em nós mesmos. 


Renato Mezan é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor titular da PUC/SP e autor de vários livros.