O mundo não é
humano só por ser feito de seres humanos, nem se torna assim somente porque a
voz humana nele ressoa, mas apenas quando se transforma em objeto do
discurso...
Nós humanizamos o que se passa no mundo e em nós mesmos apenas
falando sobre isso, e no curso desse ato aprendemos a ser humanos.
Esse
humanitarismo a que se chega no discurso da amizade era chamado pelos gregos de
filantropia, o "amor do homem", já que se manifesta na presteza em
compartilhar o mundo com outros homens.
– Hannah Arendt
Pensar nos tempos em que vivemos é pensar na
contemporaneidade. O termo contemporaneidade
refere-se aos tempos recentes, dos últimos vinte ou trinta anos, e, pode-se
considerar a marca desta época o fenômeno da globalização. Definida basicamente
como estabelecimento de uma rede de informações à distância e de fluxo
contínuo, tem como suporte a tecnologia avançada da informação, a informática,
que organiza a vida econômica, política e social, segundo uma ordem mundial. As
comunicações ultrapassam quaisquer limites ou barreiras, estabelecendo um fluxo
rápido e em movimento contínuo de dados – sons, imagens e textos cruzando o
planeta, sem controle e sem limites. O implacável avanço dos meios de
comunicação estabelece sua presença e ação em todo planeta, resultando em
profundas transformações irreversíveis para a condição humana, quanto ao
conteúdo, qualidade e quantidade de imagens a que está submetido o homem
contemporâneo. E, como consequência, ampliando o imaginário de seres humanos.
A internet assume um poder de ser uma verdadeira
extensão do viver cotidiano atual. Por outro lado, possibilita a sedução da
liberdade, de um espaço ilimitado de comunicação e de expressão do indivíduo.
Com toda essa influência contemporânea, a subjetividade fica, por assim dizer,
afetada, gerando novas formas de existência e socializações, com isso, os
indivíduos passam a optar pelas redes sociais ou mesmo pelo não vínculo.
Com todo esse movimento contemporâneo,
deparamo-nos com novos fenômenos sócio-culturais que afetam,
significativamente, a construção subjetiva. Tais fenômenos são:
- Consumismo;
- Modelos tecnológicos;
- Narcisismo moderno.
O CONSUMISMO
Tal fenômeno surge a partir do capitalismo e
segue às regras de consumo impostas pela mídia, cada vez mais influente na vida
de cada indivíduo. O consumismo passa ser um ritual seguido pelos seus
“adeptos” em busca de realização pessoal através do consumo exacerbado de bens,
produtos e serviços. Uma tentativa efêmera e frustrante de buscar segurança e
conforto e, ao mesmo tempo, tentar lidar com algum conflito interno não
resolvido.
O consumismo não propicia a elaboração do
simbólico, o sujeito não consegue sanar seus conflitos psíquicos por meio do
consumo exacerbado, pois aquilo que se compra ou consome perece, resultando,
desta forma, em repetição, um ciclo vicioso ou uma bola de neve.
Segundo Zygmun Bauman em seu livro “Amor
líquido”, vivemos numa sociedade objeto, na qual, cada vez mais as pessoas só
reconhecem umas as outras socialmente, ou seja, pelos seus bens, por aquilo que
elas possuem ou compram. Com isso, as relações ficam igualmente afetadas,
seguindo a mesma linha de troca, isto é, quando não se gosta mais ou quando a
relação não serve mais, deleta-se, troca-se, joga-se fora…
O MODELO
TECNOLÓGICO
Na
atualidade, a maioria das pessoas mantém suas relações tendo como pano de fundo
as funções técnicas, desta forma, tudo passa a ser mensurado e com ênfase nos
meios de comunicação, cada vez mais fortes. Com isso, as famílias sofrem
alterações na sua formação, tornando-se, cada vez mais, focadas na tecnologia.
O saber da prática passada de geração para geração e dos vínculos familiares se
torna cada vez mais redutível. Com isso, o ritmo que nos encontramos hoje em
dia exige que aceleremos cada vez mais para não ser ultrapassado e devorado
pela informação.
O
investimento cada vez maior no mundo virtual gera um caráter leviano em que se
pode pensar, repensar e até mesmo mudar de postura posteriormente. O
relacionar-se pela linha do virtual cria possibilidade de ser criar e “deletar”
uma relação muito facilmente. O mundo virtual é uma forma muito nova de se
relacionar, facilitando o acesso ao outro que, de uma forma física, não seria
possível.
Nesse
mundo virtual, vivemos a sociedade do espetáculo, na qual se ostenta, cada vez
mais, por meio das redes sociais, a ideia de felicidades, quanto mais amigos
virtuais mais popular, quanto mais postagens de fotos de viagens mais se
constrói a ilusão ou o mito da onipotência.
NARCISISMO MODERNO
Na realidade cada vez mais líquida da
modernidade, na qual nada se mantém, tudo está muito fluido e sem constância,
os indivíduos ficam cada vez mais frágeis em detrimento das consequências que
lhes recaem de suas ações na busca pela sobrevivência.
Na tentativa de manter uma indiferença por medo
de se apegar e se relacionar, os indivíduos produzem um mal estar cultural, expondo
a fragilidade em cada indivíduo, que não encontra segurança nas relações.
Desta forma, o indivíduo cada vez mais aberto e
cambiante tem a necessidade de fazer investidas narcísicas, a fim de dar conta
dessas constantes mudanças do mundo, que perdeu o poder organizador que o
coletivo tinha sobre o social, vivenciando, assim, sua existência de maneira
mais solitária e fria.
Assim, podemos refletir sobre nosso líquido
mundo moderno e perguntar-nos: será que não estamos preocupados com uma coisa e
falando de outra? Será que nosso desejo, paixão, objetivo ou sonho é de “relacionar-se”,
mas na verdade não estão preocupados em evitar que nossas relações acabem
congeladas e coaguladas? Estamos mesmo procurando relacionamentos duradouros ou
nosso maior desejo é que eles sejam leves e frouxos, de tal modo que possam ser
postos de lado a qualquer momento? Afinal, que tipo de conselho queremos de
verdade: como estabelecer um relacionamento ou como rompê-lo sem dor e com a
consciência limpa? (Bauman, 2004).
Será que vamos conseguir, um dia, voltar a olhar o outro nas suas
qualidades e diferenças, indo além das nossas projeções e expectativas?
Precisas ter! Precisas comprar!
Precisas experimentar! Precisas possuir! Precisas de tudo a qualquer custo, de
qualquer modo! Ora, promessas vãs, momentâneas alegrias, sentidos descartáveis;
é o reino das aparências, o primado da reclusão em uma insaciável procura por
uma resposta que está além do consumismo tresloucado. Doce mel, terrível
veneno... (Cortella, 2009, p. 109).
Referêcias
CORTELLA, Mario Sergio. Não nascemos prontos! Provocações
filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2009.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos
laços humanos. Rio de Janeiro: JZE, 2004.
Texto: Renne S. Nunes
(Psicólogo - Mestrando em Psicologia Clínica pela USP)
Fonte das imagens: GOOGLE